O nascimento do herdeiro Carlos
«(…) Com a honra restabelecida, o duque havia igualmente protegido e alargado
os seus domínios. O cronista La Taverne conta que dona Isabel observou a
cerimónia do quarto de um monge com vista para o coro da igreja. Esse monge,
Antoine La Taverne, da mesma abadia manteve um diário das negociações do Tratado
e legou-nos todos os pormenores. O envolvimento da duquesa nas complexas
negociações que restabeleceram a paz nos territórios do Sul pertencentes ao
ducado pode medir-se pela rapidez com
que preveniu o irmão, o rei Duarte de Portugal, resumindo-lhe as
cláusulas do tratado e sublinhando a mudança de atitude dos duques
relativamente à sua aliança com o ocupante inglês e a consequente fidelidade à
França. Do mesmo modo, o facto de a sua intervenção não ter favorecido os
ingleses, mau grado os laços familiares com os representantes destes, está
confirmado pelo reconhecimento demonstrado por Carlos VII que, em retribuição,
concedeu à duquesa uma renda de 4000 libras, assim como recompensou generosamente
o chanceler Nicolas Rolin e vários cavaleiros do Tosão de Ouro. Depois
desta provação, em que a duquesa secundou, com a sua personalidade, a acção
diplomática do marido, Filipe incumbi-la-á, mais tarde, de novas missões junto
de Carlos VII.
O caso de Calais
O Tratado de Arras provocou grande descontentamento entre os ingleses,
que tudo farão para enfraquecer o duque sublevando a Flandres. Pressionado
pelos seus conselheiros e senhores das cidades vizinhas, Filipe toma a
iniciativa e reúne fundos, homens e material para assaltar o porto de Calais,
nas mãos dos britânicos, que o utilizam para introduzir no continente as lãs
inglesas. A duquesa Isabel desdobra-se entre Gand e Bruges, secundando o duque
nestes preparativos, continuando assim em oposição à sua família do outro lado
da Mancha. Filipe desloca-se, em Abril de 1436,
à Holanda, para recrutar navios. Apoiado pelo povo de Gand, põe em curso acções
militares para arrancar Calais aos ingleses. Apesar da mobilização conseguida,
o duque abandona o cerco, renunciando a invadir a cidade. O duque de Gloucester
replicara, desencadeando operações de pilhagem numa parte da Flandres. Depois
de ter falhado a tentativa de retomar a fortaleza de Crotoy na embocadura do
rio Somme, o duque viu explodirem várias revoltas nas cidades flamengas,
assoladas pela miséria. Nesse tempo, dona Isabel ocupava-se ainda da administração,
reunindo o conselho em Gand. Mas foi forçada a implicar-se no apoio às
operações militares, reunindo somas de dinheiro, mobilizando as forças dos
nobres e preparando o envio de um reforço à frota de Écluse. Fundamentando-se
na sua correspondência, M. Sommé relata o detalhe destas acções, que ocuparam a
duquesa ao longo dos anos de 1436-1437, comparando-as às funções
exercidas anos antes, durante a sua agitada permanência em Dijon. Depois da
derrota diante de Calais, o duque encarregou a esposa de outras missões
delicadas. De um lado, era preciso mobilizar o exército para rechaçar os
ingleses que invadiam a região de Oostburg, e, do outro, convencer os flamengos
a combatê-los. No princípio de Agosto, a duquesa reuniu-se em Gand e em Bruges
com os deputados desta cidade e sem perda de tempo enviaram um contingente a
proteger o porto de Écluse. Ela ocupava-se, pois, dos deveres árduos do momento,
fosse no tocante a uma gestão atenta da diplomacia, fosse abrindo o saco das
libras que a tropa esperava. As capacidades de organização e de negociação de dona
Isabel, em substituição do duque, tornavam-se particularmente oportunas na
medida em que os territórios do Estado borgonhês estavam a ser cobiçados pelos
seus poderosos vizinhos.
Uma vez que os esforços de mobilização militar não
se concretizavam, Bruges sublevou-se a 26 de Agosto de 1436. Os revoltosos mataram o bailio
Tassart Brisse e capturaram o capitão do porto de Écluse, Roland de Uutkerque,
que não havia acolhido as milícias no regresso de Oostburg. Dona Isabel, tendo
junto de si o filho Carlos, viu-se obrigada a deixar Bruges a 28, não sem antes
ter sido detida e enxovalhada, bem como outras damas do seu séquito como
Marguerite de Commynes e Marguerite de La Trémoille. Acontecimentos violentos tinham,
entretanto, abalado a confiança da duquesa: Carlos fora detido e retido pelos
revoltosos de Gand na estrada de Calais e o almirante de Flandres, Jean Hornes,
acabara ferido de morte por eles a 13 de Agosto. Dona Isabel ficou de tal
maneira afectada que posteriormente virá a recusar vários convites dos administradores
de Bruges para regressar à sua cidade; só lá voltará em 1438». In Daniel Lacerda, Isabelle de Portugal – duchesse de Bourgogne,
Éditions Lanore, 2008, Isabel de Portugal, Duquesa de Borgonha, Uma Mulher de
Poder no coração da Europa Medieval, tradução de Júlio Conrado, Editorial
Presença, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-23-4374-9.
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