Humberto
I, da Itália
«Com
a entrada, em 20 de Setembro de 1870,das
tropas italianas em Roma, cuja população se manifestou, quase por unanimidade,
em 2 de Outubro seguinte, a favor da sua integração no reino de Vítor
Manuel, a Itália ficava unificada, formando um todo geopolítico. A situação,
porém, não era brilhante. Complicações de toda a ordem surgiam ao governo, e
não só políticas como também sociais. O soberano, considerado pela maior parte
do clero um usurpador, acusado de se ter apoderado dos Estados da Igreja, e combatido
por outros, especialmente os republicanos mazinistas, via-se a braços
com dificuldades. A nova nação, que congregara sob um trono único numerosos Estados
em que a península se fragmentava, não tinha qualquer prestígio externo. No
interior, as coisas não corriam melhor. Em várias regiões, particularmente no
Sul, o bandoleirismo desenfreado punha em constante risco a vida dos
habitantes, os ricos sobretudo, vivendo-se debaixo do regime da vindicta
e do assalto à mão armada. Sociedades secretas nasciam como cogumelos e
medravam por todo o lado com fins criminosos. Campeava a miséria, devido
nomeadamente às guerras que nos últimos anos haviam assolado o país, incluindo
a da unificação. Por isso, e ainda pela transferência de poderes, a vida
nacional estava completamente desorganizada. De finanças caóticas, crédito
muito baixo, a actividade industrial do país era pouco menos do que nula.
Junte-se a este deprimente panorama a reduzida alfabetização dos povos, a
ausência de um Exército e Esquadra adequados, a falta de estradas em condições e
o êxodo das juventudes, que buscavam países prósperos na ânsia de fortuna que a
pátria empobrecida não lhes podia proporcionar, e ter-se-á uma pálida visão do
quadro italiano da época. Governos, ora da Esquerda ora da Direita, sucediam-se
sem interrupção, sem condições de estabilidade apreciável, não podendo assim
produzir obra fecunda.
Neste
entrementes, a morte, em 9 de Janeiro de 1878, alijou Vítor Manuel de Sabóia da tremenda
responsabilidade que pesava sobre seus ombros vigorosos, quando ainda se estava
no período do arrumar da casa. Um mês depois finava-se, também, esse outro soberano
de um mundo mais espiritual e mais lato do que um simples reino: Pio IX, que,
após a adesão do seu Estado temporal à Itália, passou a considerar-se
prisioneiro do Vaticano, depois de ter excomungado o rei da unidade. Em
resultado dessa morte, Humberto I, também atingido pela excomunhão,
ascendia ao trono de seu pai em circunstâncias tensas, a contas com onerosa
herança. O novo monarca cingia a coroa da Itália contando nessa altura trinta e
quatro anos, pois nascera em Turim em 1844.
Com a dura experiência da caserna, passada a mocidade nos campos de guerra, Humberto
dispôs-se a travar mais essa batalha, possivelmente mais árdua do que todas as
anteriores, com o mesmo denodo e valor que eram seu timbre. A situação era
inegavelmente atribulada, mas esse rebento da estirpe dos Sabóias, reis
democratas e amorosos que, no campo sentimental, não desdenhavam das moçoilas
do povo, sadias e picantes, preferindo-as, quantas vezes, às dengosas damas da
corte, mostrou-se à altura das circunstâncias.
Hábil
e sagaz, com fina percepção do complexo de crises que fertilizavam o momento,
não temeu os graves problemas que se lhe apresentavam no caminho e que tinha de
resolver, se queria que a nova nação vingasse. Estadistas argutos e animados de
boa vontade o coadjuvaram na obra que se propôs, obra formidável realizada sem
a opressão de despotismos e sem o choque de atritos populares, aberta à crítica
sã e construtiva, conseguindo modificar em poucos anos a fisionomia ambiental
da nação. A tal tarefa devem associar-se, entre outros políticos competentes,
os nomes de Benedito Cairoli, Zanardelli, Rudinì e Giolitti, mas, sobre todos,
Depretis e Francisco Crispi, o último dos quais chegou a governar com
autoridade pessoal, em detrimento da coroa. Pode mesmo dizer-se que a
política de Crispi domina grande parte do reinado de Humberto I. Todos,
porém, se esforçaram por cumprir. Das
esquerdas? Das direitas?
Liberais ou conservadores? Que
importa a fachada sob que governavam, se as intenções eram boas e a actuação,
por sincera, resultou eficaz e útil
para as populações?
O
rei Humberto foi, na realidade, por excelência, o paradigma dos reis
democratas, paternal, constitucional, por temperamento e por educação. Homem de
hábitos simples, gostava de se misturar com o povo, auscultando-lhe as
necessidades e anseios. Muitas vezes ele era visto nas ruas de Roma, caminhando
sozinho, vestindo a sua casaca e chapéu alto, como um simples membro da classe
média do seu povo. As multidões reconheciam-no, não raramente, e ficavam-se por
longo tempo a admirá-lo, gratas à sua atitude confiada. Apodaram-no de o Bom Humberto I, o Bom e, na verdade, bom foi, e generoso também, monarca perfeito
sem rigidez protocolar nem exteriorizações de histrião. Foram todos esses
traços do seu espírito rasgado que o tornaram querido das populações e lhe
permitiram a obra de reorganização que caracterizou o seu reinado». In Américo
Faria, Regicídios que mudaram a História, Dez regicídios emocionantes, 1954,
Edições Parsifal, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-98521-1-2.
Cortesia
Parsifal/JDACT