quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Memórias da Grande Guerra. Jaime Cortesão. «Estes são os iniciados: adoram a essência. Os outros, que proclamam esse culto a cada passo, e se dizem seus detentores, são os profanos: degradando-se ao fetichismo, prosternam-se a um manipanso»

jdact

O Génio do Povo
Março de 1916
«(…) E como? Encarnando o ideal comum, obedecendo ao génio da raça a que as duas nações pertencem. Vitalizando-nos, do mesmo passo voltávamos a radiar energias fecundas. Trata-se duma luta mundial de grave risco e desmedido alcance? Nós, mal atingimos a maioridade em Aljubarrota, logo, em nossa pequenez, definimos a vida como uma força que tanto mais se exalta, quanto multiplicada pelo perigo e pela grandeza do fim. O mundo foi depois o teatro das nossas acções. Combate-se pela libertação humana? Mas o pensamento da independência tem sido o fulcro activo da consciência nacional, e as lutas pelas liberdades individuais vêm de tão longe, na história pátria, que se lhe buscarmos o início até às origens da grei, as duas datas coincidem. É um grito, que não se cala. Se o abafam na boca, restruge depois mais violento. Não; é mais ainda? O gigantesco esforço dos povos vai descobrir um mundo novo do espírito? Melhor. Aprestemo-nos então para que ao abordá-lo assentemos na carta, como outrora, o nosso padrão das Descobertas. Aí está. Se desde logo nos atraiu a causa dos aliados e ansiámos secundá-la não foi apenas pelo sentimento de fidelidade aos tratados. É que chegara a hora de reviver e reassumir a nossa grande missão civilizadora. O povo encarnou esta verdade genialmente, dissemos nós. Genialmente, pela intuição superior de todos os interesses e porque obedeceu ao génio próprio, às suas mais íntimas e puras virtualidades.
Assim realizaram profundamente, e sem o dizer, o culto da Tradição. Estes são os iniciados: adoram a essência. Os outros, que proclamam esse culto a cada passo, e se dizem seus detentores, são os profanos: degradando-se ao fetichismo, prosternam-se a um manipanso. Assemelha-se a tradição àquela Fénix da fábula. Quando o corpo está decrépito, antes que a morte venha, procura por seu alvedrio incendiar-se com a antecipada certeza de que renasce das cinzas. O antigo corpo, esse ardeu; mas o princípio activo reencarnou. Por isso os que a adoram na sua velha e primitiva forma dão-se a ilusão de certos sentimentais que, em memória do seu canto antigo, conservam a ave empalhada debaixo duma redoma.
Não nos esqueçamos: viver é progredir; mas demos ainda ao berço alguma coisa do túmulo. A esfera armilar continuará a ser na bandeira pátria um símbolo de ansiedade infinita e de domínio sobre a terra. O contrário seria renegar séculos de história. Mas deixe de atestar apenas um passado de violência e conquista. Que se dilate e inscreva, à chama das duas cores da vida, o viço da Terra e o sangue do Homem, na ânsia limitada em que elas pulsam. Dominámos o Mundo pela superfície? Afundemos-lhe esse domínio até ao coração; e a mão, que pesou sobre ele, ajude agora a libertá-lo». In Jaime Cortesão, Memórias da Grande Guerra, Obras Completas, Portugália Editora, Lisboa, 1969.

Cortesia PortugáliaE./JDACT