O Génio do Povo
Março de 1916
«(…) E como? Encarnando o ideal comum, obedecendo ao génio
da raça a que as duas nações pertencem. Vitalizando-nos, do mesmo passo voltávamos
a radiar energias fecundas. Trata-se duma luta mundial de grave risco e desmedido alcance? Nós, mal
atingimos a maioridade em Aljubarrota, logo, em nossa pequenez, definimos a
vida como uma força que tanto mais se exalta, quanto multiplicada pelo perigo e
pela grandeza do fim. O mundo foi depois o teatro das nossas acções. Combate-se pela libertação humana?
Mas o pensamento da independência tem sido o fulcro activo da consciência nacional,
e as lutas pelas liberdades individuais vêm de tão longe, na história pátria,
que se lhe buscarmos o início até às origens da grei, as duas datas coincidem. É um grito,
que não se cala. Se o abafam na boca, restruge depois mais violento. Não; é mais ainda? O gigantesco
esforço dos povos vai descobrir um mundo
novo do espírito? Melhor. Aprestemo-nos então para que ao abordá-lo
assentemos na carta, como outrora, o nosso padrão das Descobertas. Aí está. Se
desde logo nos atraiu a causa dos aliados e ansiámos secundá-la não foi apenas pelo
sentimento de fidelidade aos tratados. É que chegara a hora de reviver e
reassumir a nossa grande missão civilizadora. O povo encarnou esta verdade
genialmente, dissemos nós. Genialmente, pela intuição superior de todos os
interesses e porque obedeceu ao génio próprio, às suas mais íntimas e puras virtualidades.
Assim realizaram profundamente, e sem o dizer, o culto da
Tradição. Estes são os iniciados: adoram a essência. Os outros, que proclamam esse
culto a cada passo, e se dizem seus detentores, são os profanos: degradando-se
ao fetichismo, prosternam-se a um manipanso. Assemelha-se a tradição àquela
Fénix da fábula. Quando o corpo está decrépito, antes que a morte venha,
procura por seu alvedrio incendiar-se com a antecipada certeza de que renasce das
cinzas. O antigo corpo, esse ardeu; mas o princípio activo reencarnou. Por isso
os que a adoram na sua velha e primitiva forma dão-se a ilusão de certos
sentimentais que, em memória do seu canto antigo, conservam a ave empalhada
debaixo duma redoma.
Não nos esqueçamos: viver é progredir; mas demos ainda ao
berço alguma coisa do túmulo. A esfera armilar continuará a ser na bandeira pátria
um símbolo de ansiedade infinita e de domínio sobre a terra. O contrário seria
renegar séculos de história. Mas deixe de atestar apenas um passado de
violência e conquista. Que se dilate e inscreva, à chama das duas cores da vida,
o viço da Terra e o sangue do Homem, na ânsia limitada em que elas pulsam. Dominámos o Mundo pela superfície?
Afundemos-lhe esse domínio até ao coração; e a mão, que pesou sobre ele, ajude
agora a libertá-lo». In Jaime Cortesão, Memórias da Grande
Guerra, Obras Completas, Portugália Editora, Lisboa, 1969.
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