«(…) Mas se, a nível individual, o
comportamento de Camila é de molde a ofuscar as tropas inimigas e a
contagiar o comportamento das mulheres da cidade, ainda que fique obscurecido
pela desatenção que a jovem manifesta aos perigos que a rodeiam, a actuação no comando
das tropas que lhe estão confiadas aparece manchada por zonas de penumbra. De
facto, a posição de Camila como comandante de tropas só é brilhante na
sua fachada, lembremos o final do canto sétimo e a sua apresentação a Turno,
porque a realidade é bem diferente: a
jovem rainha dá mostras de alguma pressa e até de certa inconsciência (e
assim paga o preço da sua ousadia). Ainda na apresentação a Turno,
quando se oferece para, sozinha, defrontar o exército de Eneias, demonstra a
sua precipitação, além de mostrar alguma presunção e certa agressividade. Na
verdade, ela não possuía um conhecimento suficientemente amplo da situação
militar para empreender sem risco tal iniciativa, e só depois Turno lhe
expõe as posições dos Troianos e o seu (bom) plano para os defrontar. Além
disso, a confiança que manifesta em si própria e a atitude quase agressiva que
assume para com Turno, ao pôr-se em pé de igualdade com ele e a quase se
arvorar em chefe supremo, não deixam de manifestar uma certa presunção: Me
sine prima manu temptare pericula belli, tu pedes ad muros subsiste et moenia
setua (Deixa-me enfrentar com o meu braço os primeiros perigos da guerra; tu,
com a infantaria, fica junto dos muros e defende a cidade). Como já
vimos, Turno não aceita esta posição e expõe o seu plano que se apresentava bem
estruturado (na estratégia defendida nota-se um nítido contraste entre os
dois comandantes; Turno, como personagem da noite, prepara uma emboscada;
Camila pretende uma missão mais perigosa, mas também mais clara: enfrentar o
inimigo em campo aberto); mas, para resultar, necessitava também de bons
executantes. Ora, nem Camila, como comandante das forças que defendiam a
cidade, nem Turno, como general das tropas emboscadas nas montanhas, estão
completamente à altura das circunstâncias.
Camila, nomeadamente, revela que não tem grande capacidade de chefia, pois dá
mostras de grande inconsciência e de alguma precipitação: inconsciência, quando,
caeca, persegue Cloreu por todo o campo de batalha, indiferente a
tudo o resto, mostrando assim que está mais preocupada com a satisfação do seu
desejo feminino de despojos, femineo praedae et spoliorum ardebat amore, do que com as tropas que devia
comandar; precipitação, quando, prestes a expirar, envia uma mensagem
cheia de alarmismo a Turno e lhe pede que abandone a sua posição, extremamente
favorável, para vir defender a cidade. Turno, por seu lado, também não está
isento de culpas, pois, após ter elaborado um bom plano, não se atreve a
concretizá-lo, e dá ouvidos a uma mensagem alarmante que o leva a abandonar imediatamente a emboscada que tinha preparado. Poderemos,
pois, dizer, que é a inaptidão de Camila para a chefia de tropas que vai dar
início ao processo moroso da derrota de Turno, pois este abandona a única
posição onde lhe era possível vencer Eneias, aliando o efeito de
surpresa com a configuração favorável do terreno, para lhe vir dar luta numa
situação de aparente igualdade.
Mas a penumbra atinge outras zonas da
caracterização de Camila. De facto, apesar de mulher, não estava habituada aos
tradicionais lavores femininos: as suas mãos femininas não estavam
habituadas à roca nem aos cestos de Minerva, e, talvez por isso, se tenha
dedicado em demasia aos duros combates, sendo perseguida por um destino
precoce. Ora, apesar da sua ardente dedicação à arte guerreira, aparece a combater
com alguma ingenuidade, deixa-se ludibriar pelo filho de Auno e corre
despreocupada pelo campo de batalha, como se o único inimigo existente fosse
Cloreu. Esta sua paixão ardente pelos combates faz com que o combate lhe dê
prazer e assim, no meio da carnificina, o seu coração exulta de alegria: Mas,
eis que, no meio do massacre, surge uma Amazona, com um dos seios a descoberto
para melhor combater: é Camila, de aljava ao ombro. Este prazer, que a
leva ao combate e a matar os inimigos, faz com que ela pratique uma autêntica
chacina e demonstre toda a sua violência e rusticidade. Ora, esta chacina, a
outros olhos que não os de Virgílio, seria apenas um motivo de glória
militar, mas, para o Mantuano, é também uma oportunidade para a
caracterização negativa de Camila. É que a jovem rainha não se contenta
com as mortes, e, perante os vencidos, já caídos por terra, assume uma atitude
de desprezo e mesmo de insulto cruel: Julgaste, Tirreno, que andavas nos
bosques a perseguir feras? Chegou o dia em que armas de mulher deviam refutar
as tuas palavras. Contudo, é uma glória não insignificante que irás referir aos
Manes dos teus antepassados; a de teres caído sob o ferro de Camila.'
Daí que Virgílio deixe transparecer esta
crueldade ao longo da narrativa. Ela torna-se visível na adjectivação usada,
nomeadamente no início da descrição do morticínio: Quem é o primeiro,
quem é o último, virgem cruel, que tu derrubas com o teu dardo ? e
também a meio, para traduzir a reacção da jovem à enganosa proposta do filho de
Auno para combaterem, a pé: mas ela, em fúria e acesa de mordente
despeito. Mas é com o símile do falcão e da pomba, que põe termo a este
catálogo de mortes, que a crueldade de Camila é confirmada e acentuada: Assim
fala a donzela e, com a rapidez da chama, ultrapassa, com os seus pés alados, o
cavalo na corrida, enfrenta-o, segurando-o pelo freio e vinga-se em sangue que
lhe é odioso: assim também, e com a mesma facilidade, o falcão, ave sagrada,
descendo a voar do alto de um rochedo, apanha uma pomba numa nuvem, empoleirada
lá nas alturas, e, mantendo-a presa, lhe rasga as entranhas com as garras
aduncas ; e eis que das alturas tomba o sangue e as penas arrancadas. Mas
a sombra final, e a mais negra, acaba por ser a sua sede de despojos ricos e
vistosos. De facto, é esta sede que a leva a expor-se, de maneira desmedida,
aos perigos que a espreitam e lhe traz a escuridão da morte; é esta sede que
traz a desordem às hostes itálicas e que dá início às movimentações que vão
desembocar no duelo entre Eneias e Turno e na morte do paladino do Lácio».
In
João Manuel Nunes Torrão, Camila, A Virgem Guerreira, Revista Humanitas, volume
XLV, 1993, Universidade de Coimbra.
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