quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Maria Antonieta. Retrato de uma mulher comum. Stefan Zweig. «Até na sala do tribunal, o defensor público comparou pateticamente a “viúva Capeto” às mais famosas mulheres dissolutas da história, como Messalina, Agripina e Fredegunda»

jdact e wikipedia

Prólogo
«Escrever a história da rainha dona Maria Antonieta significa resgatar um processo mais que secular, no qual acusantes e defensores se enfrentam de maneira muito acalorada. Os acusantes são responsáveis pelo tom mais passional do debate. Para atingir a realeza, a revolução deveria atacar a rainha, e na rainha, a mulher. Ora, a verdade e a política raramente habitam sob o mesmo tecto, e onde uma personagem está prestes a ser cunhada para fins demagógicos é de se esperar pouca justiça da parte dos cúmplices subservientes da opinião pública. Contra dona Maria Antonieta, nenhum meio foi poupado, tampouco nenhuma calúnia, no intuito de levá-la à guilhotina; todos os vícios, todo aviltamento moral, toda a sorte de perversidade foram atribuídos à louve autrichienne, sem comedimento algum, em jornais, panfletos e livros. Até no próprio recinto da justiça, na sala do tribunal, o defensor público comparou pateticamente a viúva Capeto às mais famosas mulheres dissolutas da história, como Messalina, Agripina e Fredegunda. Mais decisiva ainda foi a reviravolta quando, em 1815, novamente um Bourbon ascendeu ao trono da França. Para bajular a dinastia torna-se necessário retocar a diabólica imagem com cores mais benevolentes. Nenhuma representação de dona Maria Antonieta nessa época aparece sem a moldura de uma nuvem de incenso e uma auréola sagrada. Panegíricos sucedem-se, a virtude imaculada de dona Maria Antonieta é defendida ferozmente, seu espírito de sacrifício, sua bondade, seu heroísmo puro são celebrados em verso e prosa; e histórias urdidas principalmente por mãos aristocráticas envolvem o rosto transfigurado da reine martyre, a rainha mártir. A verdade psicológica situa-se aqui, como de costume, próxima do meio-termo. Dona Maria Antonieta não foi a grande santa da realeza, tampouco a prostituta, a grue da revolução, e sim um carácter medíocre, na verdade uma mulher comum, não particularmente esperta, não especificamente insensata, nem fogo nem gelo, sem especial inclinação para a bondade e sem nenhum apego ao mal, a mulher mediana de ontem, hoje e amanhã, sem pendor para o demoníaco, sem ânsia pelo heróico e, talvez por isso, tema pouco adequado a uma tragédia. A história, porém, esse grande demiurgo, não necessita de um carácter heróico como personagem principal para construir um drama comovente. A tensão trágica não resulta apenas da grandeza de uma personagem, mas sobretudo da falta de harmonia entre um ser humano e seu destino. A tensão dramática pode vir à tona quando um ser grandioso, um herói, um génio, entra em conflito com o mundo que o cerca, e esse mundo mostra-se estreito demais, hostil demais para a tarefa que lhe foi imposta ao nascer, como um Napoleão, por exemplo, sufocado no exíguo cárcere de Santa Helena, um Beethoven enclausurado na sua surdez.
Ela emerge a toda hora e por toda parte em relação a uma grande figura que não encontra a sua medida e a sua expressão. Todavia, o trágico igualmente assoma quando uma natureza mediana ou mesmo frágil se vê impelida por um destino extraordinário e envolvida em responsabilidades pessoais que a oprimem e destroem, e essa forma do trágico me parece a mais pungente do ponto de vista humano. Pois o ser humano extraordinário procura de modo inconsciente um destino extraordinário; de acordo com a sua natureza supradimensional, está organicamente apto a viver de maneira heróica ou, segundo Nietzsche, de maneira perigosa. Ele desafia o mundo com a violenta exigência inerente a seu carácter. Assim, o génio, afinal, não deixa de ser culpado pelo seu sofrimento, porque a missão a ele destinada anseia de forma mística por essa prova de fogo como factor desencadeante de um derradeiro impulso. Tal como a tempestade impele a gaivota, assim também seu imperioso destino o conduz cada vez mais adiante e mais alto. O carácter medíocre, ao contrário, por sua própria natureza, reclama uma existência pacata, almeja, sente de facto a necessidade de tensões pouco fortes, prefere viver calmamente e à sombra, ao abrigo dos ventos e sob temperaturas amenas. Por isso defende-se, por isso amedronta-se, por isso foge quando uma mão invisível o lança em meio a turbulências. Ele não anseia por responsabilidades históricas; ao contrário, teme-as. Não procura o sofrimento; este, ao contrário, lhe é imposto. É forçado por factores externos, e não internos, a ser maior que sua medida. Esse sofrimento do não herói, do homem medíocre, uma vez que lhe falta visão clara, não me parece menor que o sofrimento patético do herói verdadeiro, e talvez seja ainda mais devastador, pois o homem comum deve suportá-lo sozinho; e não possui, como o artista, a salvação venturosa de transformar o seu tormento em obras, em formas duradouras.
Porém, por vezes o ser humano medíocre consegue revolver o destino e afastá-lo violentamente para longe de sua própria mediocridade, como resposta a uma exigência pessoal. Nesse sentido, a vida de dona Maria Antonieta talvez seja disso o exemplo histórico mais evidente. Essa mulher percorre um caminho desinteressante durante os primeiros trinta de seus trinta e oito anos de vida, só que numa esfera extravagante. Nunca extrapola a medida do meio-termo, nem em relação à bondade nem em relação à maldade: uma alma morna, um carácter medíocre que, do ponto de vista histórico, a princípio desempenha apenas o papel de figurante. Sem o irromper da revolução sobre o seu alegre e despreocupado mundo lúdico, essa pouco significativa representante dos Habsburgo teria continuado a viver de maneira imperturbável, como milhares de mulheres de todos os tempos.
Ter-se-ia dedicado à dança, às conversas, ao amor, às gargalhadas; teria se coberto de enfeites; teria feito visitas e sido generosa com as esmolas; teria dado à luz filhos e, por fim, se deitando tranquila numa cama para morrer, sem ter verdadeiramente vivido o espírito de seu tempo. Teria recebido um solene funeral de rainha. Depois, contudo, desapareceria da memória da humanidade como todas aquelas outras incontáveis princesas, as Maria Adelaides e Adelaide Marias, as Ana Catarinas e Catarina Anas, cujas lápides com inscrições frias e impessoais passam despercebidas no Gotha. Nunca um ser humano vivo teria sentido a curiosidade de indagar sobre sua grandeza, sobre sua alma estagnada. Ninguém ficaria sabendo quem realmente foi. E, isso é o mais importante, nem mesmo ela, dona Maria Antonieta, a rainha da França, teria tomado conhecimento da sua provação e compreendido quem realmente era. Pois faz parte da felicidade ou infelicidade do ser humano medíocre o facto de ele, por si mesmo, não sentir a coacção de conhecer a sua medida, não ter a curiosidade de questionar-se antes que o destino o faça. Deixa que as suas capacidades adormeçam dentro de si, intocadas, que suas verdadeiras inclinações esmoreçam, que suas forças se debilitem como músculos nunca utilizados, antes que a necessidade real de defesa os enrijeça. Um carácter medíocre deve primeiro emergir de dentro de si mesmo para ser tudo aquilo que poderia ser, talvez mais do que antes imaginava e supunha. Para tanto, o destino não possui outro instrumento de açoite além da infelicidade. Assim como um artista, para pôr à prova a sua força criativa, por vezes procura intencionalmente um tema em aparência simples, em lugar de outro pateticamente abrangente, também o destino procura de tempos em tempos um herói insignificante para demonstrar que é capaz de impor maior tensão a um enredo frágil, de construir uma grande tragédia a partir de uma alma fraca e apática. Tal tragédia é uma das mais belas desse heroísmo involuntário, e chama-se dona Maria Antonieta». In Stefan Zweig, Maria Antonieta, Retrato de uma mulher comum, Editora Jorge Zahar, tradução de Irene Aron, 2013, ISBN 978-853-781-035-4.

Cortesia de Zahar/JDACT