«Nunca
a memória de dona Joana D’Arc foi objecto de controvérsias tão ardentes, tão
apaixonadas, como as que, desde há alguns anos, se vêm levantando em torno
dessa grande figura do passado. Enquanto de um lado, exaltando-a sobremaneira,
procuram monopolizá-la e encerrar-lhe a personalidade no paraíso católico, de
outro, de forma brutal com Thalamas e Henri Bérenger, ou hábil e erudita,
servida por um talento sem par, com Anatole France, esforçam-se por
amesquinhar-lhe o prestígio e reduzir-lhe a missão às proporções de um simples
facto episódico. Onde encontra Reims a
verdade sobre o papel de dona Joana D’Arc na história? A nosso ver, nem
nos devaneios místicos dos crentes, nem tampouco nos argumentos terra-a-terra
dos críticos positivistas. Nem estes, nem aqueles parecem possuir o fio condutor,
capaz de guiar-nos por entre os factos que compõem a trama de tão extraordinária
existência. Para penetrar o mistério de dona Joana D’Arc, afigura-se-nos necessário
estudar, praticar longamente as ciências psíquicas, sondar as profundezas do
mundo invisível, oceano de vida que nos envolve, onde emergimos todos ao nascer
e onde mergulha Reims pela morte. Como poderiam compreender dona Joana
escritores cujo pensamento jamais se elevou acima do âmbito das contingências terrenas,
do horizonte estreito do mundo inferior e material, e que nunca consideraram as perspectivas do Além? De há
cinquenta anos a esta parre, um conjunto de factos, de manifestações, de
descobertas, projecta uma nova luz sobre os amplos aspectos da vida,
pressentidos desde a aurora dos tempos, mas sobre os quais apenas tínhamos até
aqui dados vagos e incertos. Graças a uma observação atenta, a uma
experimentação metódica dos fenómenos psíquicos, foi-se construindo, pouco a pouco,
uma vasta e poderosa ciência.
O
Universo aparece-nos como um reservatório de forças desconhecidas, de energias
incalculáveis. Um infinito vertiginoso abre-se-nos ao pensamento, infinito de
realidades, de formas, de potências vitais, que nos escapavam aos sentidos.
Algumas manifestações dessas forças já puderam ser medidas com grande precisão,
por meio de aparelhos registadores. A noção do sobrenatural esboroa-se; mas a natureza
imensa vê os limites dos seus domínios recuarem sem cessar, enquanto se revela
a possibilidade de uma vida orgânica invisível, mais rica, mais intensa do que a
dos humanos, regida por majestosas leis, vida que, em muitos casos, se mistura
com a nossa e a influencia para o bem ou para o mal. A maior parte dos
fenómenos do passado, afirmados em nome da fé, negados em nome da razão, podem
doravante receber explicação lógica, científica. Estão nessa ordem os factos
extraordinários que matizam a existência da Virgem de Orleães. Só o estudo de
tais factos, facilitado pelo conhecimento de fenómenos idênticos, observados,
classificados, registados nos nossos dias, pode explicar-nos a natureza e a intervenção
das forças que nela e em torno dela actuavam, orientando-lhe a vida para um
nobre objectivo. Os historiadores do século XIX, Michelet, Wallon, Quicherat,
Henri Martin, Siméon, Luce, Joseph Fabre, Vallet de Viriville, Lanéry d'Arc,
foram unânimes em exaltar dona Joana, em considerá-la uma heroína de génio, uma
espécie de messias nacional.
Somente
no século XX é que a nota crítica se fez ouvir, e por vezes de forma violenta.
Thalamas, professor substituto da Universidade, na sua obra Jeanne d’Arc: l’histoire et la légende
nunca sai dos limites de uma crítica honesta e cortês. O seu ponto de vista é o
dos materialistas: Não cabe a nós,
diz, que consideramos o génio uma
neurose, censurar Joana por ter objectivado em santas as vozes da sua própria
consciência. Todavia, nas conferências que fez em França, foi geralmente mais
incisivo. Em Tours, a 29 de Abril
de 1905, falando sob os auspícios da
Liga do Ensino, recordava a opinião do professor Robin, de Cempuis, um dos seus
mestres, segundo o qual dona Joana nunca existira, e a sua história não passava
de um mito. Thalamas, talvez um tanto constrangido, reconhece a realidade da
vida de dona Joana, mas arremete contra as fontes em que os seus panegiristas
beberam. Engendra amesquinhar-lhe o papel, sem descer ao ponto de injuriá-la.
Segundo ele, dona Joana pouco ou nada teria feito, pelo que caberia aos
habitantes de Orleães todo o mérito de se terem libertado. Henri Bérenger e
outros escritores abundaram em apreciações análogas e o próprio ensino oficial
como que se impregnou, até certo ponto, dessas opiniões. Nos manuais das
escolas primárias, eliminaram da história de dona Joana toda a componente
espiritualista. Neles já não se alude às suas vozes; é sempre a voz da sua consciência que a guia. É
notória a diferença». In Léon Denis, Joana D’Arc, A Celta, A
missão histórica da heroína, as suas visões e espiritualidade, tradução de
Eduardo Amarante, projecto Apeiron, Zéfiro, 2010, ISBN 978-989-677-023-5.
Cortesia
de Zéfiro/JDACT