O Tempo de Meu Pai
«(…) Não era absolutamente seguro que tudo não passasse de
uma comédia, e decerto imaginas que eu protestei contra tudo aquilo.
Conheces-me o suficiente para saber até que ponto detesto a cobardia ou mesmo a
sua aparência. Eu era sincera, e isso permitiu dar o espectáculo de uma cena de
suplicações, eu recusando-me a deixar Germânico e ele pressionando-me com
argumentos afectuosos. Naturalmente, tal cena atraiu, pouco a pouco,
espectadores. Assim que eu cedi e que a fila de carros partiu do centro do acampamento,
para se dirigir para a porta principal, uma multidão de soldados acompanhou-o.
Tudo aquilo era suficientemente patético. Espalhou-se o boato de que íamos
pedir abrigo aos Tréveros, tu sabes quem são, o povo gaulês que nos é
tão fiel. Perante a ideia de que estaríamos mais seguros entre Gauleses do
que no acampamento das legiões, os soldados indignaram-se, ficaram desolados e
enfureceram-se. Queriam reter os carros. O teu pai aproveitou para lhes dirigir
um discurso bastante hábil; nele reconheci, em diversos momentos, a memória dos
grandes oradores do passado. A conclusão foi que eu não ficaria no acampamento.
A estação estava já muito avançada e tu não tardarias em nascer. Aqueles que
procuravam reter-me, mas por que não provavam eles, de uma forma evidente, que
tinham voltado ao cumprimento do dever?
Eles podiam fazê-lo, condenando à morte, de surpresa, os culpados da rebelião!
Eis, concluiu a minha mãe, as circunstâncias em que tu, minha filha, nasceste.
Entre perigos e semelhante a uma personagem trágica.
Eu ouvia tudo aquilo um pouco enfastiada, como a narração de
coisas distantes com as quais se deleitam, inexplicavelmente, os mais velhos,
que lhes associam um interesse, que, de uma forma vã, tentam partilhar com
jovens auditores. Não obstante, guardava para mim a ideia de que o destino fizera
de mim, antes mesmo de eu nascer, uma heroína de tragédia. Uma rainha, evidentemente.
Com excepção das rainhas, não há, nas tragédias, senão amas e confidentes. Eu
não poderia ser nem uma nem outra. Portanto, era chamada a ser rainha! Quando a
tardinha sobreveio, uma luz mais clara apareceu sobre o Janículo, acompanhando
o pôr-do-sol. A minha mãe adormecera, e eu fiquei sozinha, a pensar, tentando
recordar-me do que ela dissera. Não tinha a certeza de ter compreendido tudo.
As palavras, por certo, seria capaz de as repetir, estavam gravadas na minha
memória e ainda hoje, depois de trinta anos, as posso recordar! Mas o seu
sentido não me parecia muito claro. Deixaram-me duas ou três impressões. Em primeiro
lugar, a importância dos soldados na vida do Estado, o poder que tinham para
pôr ou depor imperadores, consoante aqueles a quem se ligavam. Compreendi
também que esse poder assentava no direito, que lhes era reconhecido, de matar.
E então, a minha digressão voou até à pessoa de meu pai, de
quem apenas tinha imagens confusas, mas bastante exaltantes! A do triunfador,
sobre o carro que o conduzia ao Capitólio, para homenagear Júpiter Óptimo
Máximo com a sua vitória. Também eu estava no carro, com os meus três
irmãos mais velhos e a minha irmã Drusila, a mais nova. Ela não tinha
ainda seis meses. Eu tinha muito orgulho por ser maior do que ela. Eu tinha
dois anos e meio! O triunfo do meu pai. Ainda uma das minhas maiores recordações,
aquela que eu gostava de lembrar, com todos os pormenores que conseguia
encontrar, à noite, quando adormecia: os gritos da multidão, o passo dos
soldados sobre as lajes da Via Sacra, os prisioneiros germanos que precediam o
cortejo dos vencedores e as imagens, pintadas em grandes painéis, dos países que
as nossas legiões tinham conquistado, das montanhas, dos rios, do sítio onde eu
nascera e que, para mim, assumia a forma de uma lenda. E depois, vinha o
próprio Germânico, grande, magnífico, dominando toda a cena. Conheci-o tão
pouco, por tão pouco tempo!
O quarto estava agora em completa escuridão. A minha mãe
estava em silêncio, mas os seus lábios moviam-se. Sonhava com o quê? Com
o passado que vivera? Com o futuro que a esperava e que eu percebera que ela temia? As últimas luzes do
dia deixavam-me ainda distinguir, sobre as paredes do quarto, imagens que, como
eu sabia, o meu pai mandara pintar, muito antes de conhecer o Egipto, aonde ele
não conseguiu evitar ir, no último ano da sua vida. Aí havia figuras estranhas,
que me causavam um pouco de medo. Um servo, chamado Psamútis, que viera
de 1á com a minha mãe, ensinara-me o nome dessas figuras e coisas estranhas a
seu respeito. Vês, dizia-me
ele, esta deusa de pé, que tem um crescente
de lua sobre a cabeça, vês o seu longo vestido branco e o seu manto azul?
É
Ísis, a rainha. Acaba de dar a
vida a Osíris, seu marido, que estava morto... Eu pensava naquela que
tinha o poder de reanimar os mortos, e perguntava a mim mesma se a minha mãe
alguma vez se tentara convencer de que a graçade Ísis lhe devolveria, um
dia, aquele que ela perdera?» In
Pierre Grimal, Memórias de Agripina, Lyon Edições, Romances Históricos, 2000,
ISBN 972-8461-51-8.
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