«(…) Diversos são, no entanto, os quadros existenciais que
nos conduzem às patologias dos sentidos e nos empurram para uma espécie de
astenia. Passaremos, em seguida, em revista, mesmo se brevemente, quatro
experiências dessa ordem: o sofrimento humano, o luto, o aprisionamento da vida
pela rotina ou os efeitos da nossa exposição actual ao excesso de comunicação.
Do lado do sofrimento
Vivemos numa sociedade dominada cada vez mais pelo mito do
controlo. E o seu postulado dogmático é este: a receita para uma vida realizada
é a capacidade de controlá-la a 360 graus. Não percebemos até que ponto uma
mentalidade assim representa a negação do princípio de realidade. Isto para
dizer como somos pouco ajudados a lidar com a irrupção do inesperado que hoje o
sofrimento representa. Sentimos a dor como uma tempestade estranha que se abate
sobre nós, tirânica e inexplicável. Quando ela chega, só conseguimos sentir-nos
capturados por ela, e os nossos sentidos tornam-se como persianas que, mesmo
inconscientemente, baixamos. A luz já não nos é tão grata, as cores deixam de levar-nos
consigo na sua ligeireza, os odores atormentam-nos, ignoramos o prazer,
evitamos a melodia das coisas. Damos por nós ausentes nessa combustão silenciosa
e fechada onde parece que o interesse sensorial pela vida arde. A dor é tão grande, a dor sufoca, já não tem
ar. A dor precisa de espaço, escreve Marguerite Duras nas páginas
autobiográficas do volume a que chamou A
dor. E descobrimo-nos mais sós do que pensávamos no meio desse incêndio
íntimo que cresce. Nas etapas de sofrimento a impotência parece aprisionar
enigmaticamente todas as nossas possibilidades. E colocamos em dúvida que este
limitado corpo que somos seja o lugar para viver a nossa aventura total ou um
fragmento dela que seja significativo. Precisaríamos de recursos que nos capacitassem
a vivenciar a incapacidade, provocada pela dor, com outro ânimo e outro olhar.
Do lado do luto
O luto é um manto de tristeza que oculta dois corpos: o corpo
amado que parte e o nosso próprio corpo que, permanecendo, tem, no entanto,
absoluta necessidade de acompanhá-lo, não só no plano afectivo e simbólico, mas
também pela diminuição dos nossos indicadores vitais. Lembro-me da descrição
que abre o romance As ondas,
de Virginia Woolf, onde há uma frase que, no meu entender, descreve exactamente
o que é o luto: a separação entre o céu e o mar. Uma barra de sombra desceu no horizonte, separando o céu do mar, e o
grande tecido cinzento ficou marcado por grossas linhas que se agitavam sob a
superfície, perseguindo-se num ritmo infindável. A experiência da perda é também
um desses segredos do corpo, de si para si, com o qual é-nos cada vez mais
difícil lidar. Por um lado, a morte tornou-se um tabu. É mais desagradável
referi-la do que soltar uma obscenidade. Ocultamo-la por todos os meios. E depois,
por outro, quando nos cabe saber que os que amamos partem, isso mergulha-nos
numa dor e numa solidão extremas. Entramos, então, numa espécie de suspensão,
de recuo face à vida, de eclipse na nossa relação não só com o exterior, mas
com o corpo que somos. Faltam-nos mestres que nos ajudem a avizinhar-nos da
morte e do que ela representa para a nossa humanidade. Precisaríamos primeiro
de chorar a nossa impossibilidade de consolação (extraordinária frase do Antigo
Testamento que São Mateus recupera para o seu Evangelho, na cena da morte dos
inocentes: Ouviu-se uma voz em Ramá, uma
lamentação e um grande pranto: é Raquel que chora os seus filhos e não quer ser
consolada. Precisaríamos depois de chorar e ser consolados, em pequenos
passos. E integrar então progressivamente a ausência numa nova compreensão
desse mistério que é a presença dos outros na nossa vida». In José Tolentino Mendonça, A
Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção Poéticas do Viver Crente,
Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN 978-989-673-396-4.
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