sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Imitação da Felicidade. Urbano Tavares Rodrigues. «Às vezes aparecem uns estrangeiros, mesmo no Inverno. É o que vale! Se assim não fosse, acabávamos por morrer à fome. E até distrai. Nos cafés é sempre a mesma gente, todos acima de mim: mestres de fábrica, vendedores de peixe, funcionários, algum doutor»

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Maio
«(…) E as noites de patuscada com malta da corda e com marujos americanos perdidos de bêbados, as cabronas que a gente comia de madrugada so por levá-las a casa!... Enjoei tudo isso. Até vomitava os fregueses. Discutia com eles por dá cá aquela palha. E agora, vejam lá, parece-me que nesse tempo é que fui feliz É sina nossa, creio eu, termos sempre saudade, talvez por nos irmos aproximando da morte e tudo ser cada vez mais fechado. Não será assim? Agora aqui, é só esperar. Subi de condição, pois subi… dizem-me que sim. Mas qual é o meu proveito? Ter um automóvel aqui em Portimão já é quase ser gente. Que é como quem diz, tenho mais obrigações, e não ganho nada com isso. Se fosse madraço por inclinação… Mas não sou. A menos que já me tenha habituado, sempre metido no café ou no barbeiro. Deixo um rapazito na praça a tomar-me conta do carro, para me vir avisar se alguém telefonar ou perguntar por mim. Para que é que hei-de lá estar a pôr-me doido? Às vezes aparecem uns estrangeiros, mesmo no Inverno. É o que vale! Se assim não fosse, acabávamos por morrer à fome. E até distrai. Nos cafés é sempre a mesma gente, todos acima de mim: mestres de fábrica, vendedores de peixe, funcionários, algum doutor. Estas duas francesas queriam conhecer, imagine-se, operários e pescadores. Mas os operários não vão ao café (quanto muito à taberna) e os pescadores dormem de dia, para se fazerem ao mar pela tardinha e voltarem de madrugada. Chegaram a falar-me que organizasse para elas uma copejada de atum. Mas a vontade não era muito forte, porque não me tocaram mais nisso logo que a Rocha as enfeitiçou. É assim mesmo: nadam como peixes, entre duas águas, de olhos abertos, parece que estão a descobrir o paraíso… E o que elas gostam de apanhar os tais fósseis que a maré vaza deixa enterrados na areia! Levam as malas carregadas de pedras e de conchinhas para fazer cinzeiros. Depois não se cansam de ver as grutas, a ponta de João d’Arens, a Guarita, os Três Irmãos: vêem realmente com olhos de ver todos esses leixões e as praias até ao Vau, e as do Alvor, que são mesmo uma beleza em sol lhes dando por riba, quando a falésia fica como um filme colorido, amarela, daquela cor falsa da nossa terra que se desfaz, e noutros sítios quase encarnada, como sangue, ou de um castanho lindíssimo, quase doirado. A gente já não se dá conta: os estrangeiros é que apreciam». In Urbano Tavares Rodrigues, Imitação da Felicidade, Publicações Europa-América, Mem Martins, colecção Século XX, 1988.

Cortesia de PEA/JDACT