Maio
«(…) E as noites de patuscada com malta da corda e com marujos
americanos perdidos de bêbados, as cabronas que a gente comia de madrugada so
por levá-las a casa!... Enjoei tudo isso. Até vomitava os fregueses. Discutia
com eles por dá cá aquela palha. E agora, vejam lá, parece-me que nesse tempo é
que fui feliz É sina nossa, creio eu, termos sempre saudade, talvez por nos
irmos aproximando da morte e tudo ser cada vez mais fechado. Não será assim? Agora
aqui, é só esperar. Subi de condição, pois subi… dizem-me que sim. Mas qual é o meu proveito? Ter um
automóvel aqui em Portimão já é quase ser gente. Que é como quem diz, tenho
mais obrigações, e não ganho nada com isso. Se fosse madraço por inclinação… Mas
não sou. A menos que já me tenha habituado, sempre metido no café ou no barbeiro. Deixo um rapazito
na praça a tomar-me conta do carro, para me vir avisar se alguém telefonar ou
perguntar por mim. Para que é que
hei-de lá estar a pôr-me doido? Às vezes aparecem uns estrangeiros,
mesmo no Inverno. É o que vale! Se assim não fosse, acabávamos por morrer à
fome. E até distrai. Nos cafés é
sempre a mesma gente, todos acima de mim: mestres de fábrica, vendedores de
peixe, funcionários, algum doutor. Estas duas francesas queriam conhecer,
imagine-se, operários e pescadores. Mas os operários não vão ao café (quanto muito à taberna) e os pescadores
dormem de dia, para se fazerem ao mar pela tardinha e voltarem de madrugada. Chegaram
a falar-me que organizasse para elas uma copejada de atum. Mas a vontade não
era muito forte, porque não me tocaram mais nisso logo que a Rocha as
enfeitiçou. É assim mesmo: nadam como peixes, entre duas águas, de olhos
abertos, parece que estão a descobrir o paraíso… E o que elas gostam de apanhar
os tais fósseis que a maré vaza deixa enterrados na areia! Levam as malas
carregadas de pedras e de conchinhas para fazer cinzeiros. Depois não se cansam
de ver as grutas, a ponta de João d’Arens, a Guarita, os Três Irmãos: vêem
realmente com olhos de ver todos esses leixões e as praias até ao Vau, e as do
Alvor, que são mesmo uma beleza em sol lhes dando por riba, quando a falésia
fica como um filme colorido, amarela, daquela cor falsa da nossa terra que se
desfaz, e noutros sítios quase encarnada, como sangue, ou de um castanho
lindíssimo, quase doirado. A gente já não se dá conta: os estrangeiros é que
apreciam». In Urbano Tavares Rodrigues, Imitação da Felicidade, Publicações
Europa-América, Mem Martins, colecção Século XX, 1988.
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