terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

A Ruiva e Outras Histórias. Fialho de Almeida. «E, com risadinhas pequenas e cruas, geladas, doidas, que produziam como o grito do estanho, aconchegou-se ao canto, para dormir, com círculos de cão vadio que se anicha. Todos procuravam espicaçá-lo com uma chufa. Blasfemava-se…»

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Contos. A Ruiva
«(…) Tentava caminhar; a sua sombra oscilava, amplificada na parede, como a de um antediluviano fenomenal, e quase se não compreendia bem como aquela coisa era um homem. Arrastou-se custosamente para um canto; ao passar por Zé Claudino tomou-lhe o copo, levou à boca o vinho e esteve bebendo devagar. As gotas, de um roxo sujo, caíam-lhe pelas barbas. O nó da garganta subia-lhe e descia com vagarosos movimentos de embalo no cilindro de uma bomba. Pousou o copo com ruído, com a manga da jaqueta limpou os beiços. E a filha?, perguntaram-lhe. A Ruiva... O tempo tem estado famoso para doentes. Um sol quentinho que é um forno. Do fundo, alguém disse para Zé Claudino: A Ruiva ainda é viva? E o trolha, curioso: Não era essa que deitava sangue pela boca? Na tenda do Malaquias vi eu..., foi pelo Santo Amaro, faz agora anos... Mas cada um procurava informar-se: Uma gaja de granha encarnada, um sinalzinho de cabelos no pescoço... O quê? Era filha daquilo? E apontava o coveiro. Bem sei, diziam; que peça! A que estava com o Nicolas das seges d’enterro. Contem-me cá quem isso era. Bêbeda como ratos! Ora esperem. Ela era também da súcia da Panasqueira. Lembras-te, Zé Claudino? Bons tempos, fez o interrogado do fundo da sua saudade dissoluta, aquela noite no palheiro do Panelas. Vinte raparigas dos casais, todas pimponas, vieram dormir à granja. Alta noite, piscava o olho, alta noite... Não ponhas mais na carta. Tosquei tudo! Que bailões! E a Ruiva também era... Uma mulher dos diabos! Enfezadita dos nervos, mas coragem que tinha diabo. Quando ela se deitou ao Nicolau, aquela vez pelo Entrudo, além ao Quintalinho! Prega-lhe duas taponas, que nem eu sei como o não virou! O coveiro olhava, sem compreender, um pasmo idiota na face. Na penumbra da taberna, aquele asqueroso vulto tinha uma expressão rembrandtesca e crua, que fazia medo. O deboche nunca se concentrara tanto, podia-se jurar. Mas, tio Farrusco, a Ruiva vai melhor, hem? Melhor, melhor..., gaguejou ele. Esta manhã via-a estar dormindo..., mais branca! Pagas cambrainha, ó tirano? Uma pessoa, cos diabos, gosta de molhar a palavra. Quero lá saber!... Tentava apoiar-se na banca, com as duas mãos trémulas. Ouviam-no cantarolar baixo, babando-se: foi fazer uma caçada A serra de Montalvão! Aguardente.
E, com risadinhas pequenas e cruas, geladas, doidas, que produziam como o grito do estanho, aconchegou-se ao canto, para dormir, com círculos de cão vadio que se anicha. Todos procuravam espicaçá-lo com uma chufa. Blasfemava-se, em voz alta, uma riqueza inultrapassável de obscenidades. A minha filha, resmungou o tio Farrusco. Querem saber da minha filha, da Ruiva... Súcia de tarimbeiros!... Foi fazer uma caçada A serra... Ainda hoje o Nicolau, que atira à vala as reses que se abatem no hospital, me disse que a trazia ali. É boa! Se eu bem vi o saco..., e cosido que ele vinha. A Ruiva em postas! Ria-se. Caíra tudo num silêncio álgido. Calou-se, e depois: Também eu hei de morrer. Quero lá saber nada daquela grande velhaca! Vamos, disse eu. Há uma coisa pior que um cão danado: é um coveiro bêbedo. E saí. Um dia antes, o meu escalpelo penetrara o corpo dessa perdida criatura, que veio a fornecer subsídios notáveis à minha tese inaugural. Inquiri pormenores. Disseram-me que o tio Farrusco fora casado com uma vendedeira, a Marta, muito conhecida por Buenos Aires. Soube-se depois que as hortaliças que esta mulher vendia eram pelo marido plantadas no cemitério, para lá da vala e longe das vistas dos indiscretos, hortaliças que com o tempo e o belo tempero da terra adquiriam grande desenvolvimento. Se lhas gabavam, Marta retorquia: Ai!, bom dinheiro custam, freguesa. Vêm todas as manhãs de Odivelas, uma estopada que eu sei!... E explicava que um cunhado, da quinta do senhor marquês de Borba, tinha seu vintém e um bocadinho de terra.
É no Alto de S. João que se sepultam os cadáveres do hospital; para o nosso caso, porém, isso não importa onde se faziam os belos nabos e aquelas lombardas folhudas. Caro, tudo pelas últimas, dizia pondo a sogra, os cordões a luzir no peito. Carolina nasceu no dia da morte da mãe. Até ali, o coveiro vivera sem misérias, mas, morta a mulher, descobriu-se donde vinham as couves e ninguém mais lhas comprou. Não se sabe como a pequena se criara, mas aos doze anos era bonita, franzininha, o nariz arrebitado, descalça e cheia de remendos. E, sem consciência do que via, acompanhava o pai na sinistra ocupação de sepultar os mortos. Assim crescera. Naquela miseranda existência entrara a criar predileções. Começou a amar principalmente os mortos que paravam à porta do cemitério em ricas berlindas douradas, entre filas de gatos-pingados lúgubres, de tochas acesas, e puxadas por seis parelhas cobertas de crepes. Visitava-os na casa das observações, acocorada a um canto, com o olhar absorto, durante as vinte e quatro horas que os caixões ali passavam abertos, e onde contemplava, deitados na pétrea imobilidade derradeira, os que na sua vaidade egoísta, corruptos e miasmáticos, iam habitar em sepulcros de mármore, com figuras sentimentais na fachada e pomposas inscrições nas lápides. Pode dizer-se que aprendeu a ler no cemitério, quando curiosa na sua pobreza esfrangalhada queria saber os nomes e posições ocupadas no mundo pelos que habitavam aquela branca cidade de mármores, de que se julgava rainha». In Fialho de Almeida, A Ruiva e Outras Histórias, 1881, Contos, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ISBN 978-972-370-963-6.

Cortesia de LLivros/JDACT