Contos.
A Ruiva
«(…) Tentava
caminhar; a sua sombra oscilava, amplificada na parede, como a de um
antediluviano fenomenal, e quase se não compreendia bem como aquela coisa era
um homem. Arrastou-se custosamente para um canto; ao passar por Zé Claudino
tomou-lhe o copo, levou à boca o vinho e esteve bebendo devagar. As gotas, de
um roxo sujo, caíam-lhe pelas barbas. O nó da garganta subia-lhe e descia com
vagarosos movimentos de embalo no cilindro de uma bomba. Pousou o copo com
ruído, com a manga da jaqueta limpou os beiços. E a filha?, perguntaram-lhe. A Ruiva... O tempo tem
estado famoso para doentes. Um sol quentinho que é um forno. Do fundo, alguém
disse para Zé Claudino: A Ruiva ainda
é viva? E o trolha, curioso: Não era essa que deitava sangue pela boca? Na tenda do Malaquias
vi eu..., foi pelo Santo Amaro, faz agora anos... Mas cada um procurava informar-se:
Uma gaja de granha encarnada, um sinalzinho de cabelos no pescoço... O quê? Era filha daquilo? E apontava o coveiro. Bem sei, diziam;
que peça! A que estava com o Nicolas das seges d’enterro. Contem-me cá quem
isso era. Bêbeda como ratos! Ora esperem. Ela era também da súcia da
Panasqueira. Lembras-te, Zé Claudino?
Bons tempos, fez o
interrogado do fundo da sua saudade dissoluta, aquela noite no palheiro do
Panelas. Vinte raparigas dos casais, todas pimponas, vieram dormir à granja.
Alta noite, piscava o olho, alta noite... Não ponhas mais na carta. Tosquei
tudo! Que bailões! E a Ruiva também era... Uma mulher dos diabos! Enfezadita
dos nervos, mas coragem que tinha diabo. Quando ela se deitou ao Nicolau,
aquela vez pelo Entrudo, além ao Quintalinho! Prega-lhe duas taponas, que nem
eu sei como o não virou! O coveiro olhava, sem compreender, um pasmo idiota na
face. Na penumbra da taberna, aquele asqueroso vulto tinha uma expressão
rembrandtesca e crua, que fazia medo. O deboche nunca se concentrara tanto,
podia-se jurar. Mas, tio Farrusco, a Ruiva vai melhor, hem? Melhor, melhor..., gaguejou
ele. Esta manhã via-a estar dormindo..., mais branca! Pagas cambrainha, ó tirano? Uma pessoa, cos diabos,
gosta de molhar a palavra. Quero lá saber!... Tentava apoiar-se na banca, com
as duas mãos trémulas. Ouviam-no cantarolar baixo, babando-se: foi fazer uma
caçada A serra de Montalvão! Aguardente.
E, com
risadinhas pequenas e cruas, geladas, doidas, que produziam como o grito do
estanho, aconchegou-se ao canto, para dormir, com círculos de cão vadio que se
anicha. Todos procuravam espicaçá-lo com uma chufa. Blasfemava-se, em voz alta,
uma riqueza inultrapassável de obscenidades. A minha filha, resmungou o tio
Farrusco. Querem saber da minha filha, da Ruiva... Súcia de tarimbeiros!... Foi
fazer uma caçada A serra... Ainda hoje o Nicolau, que atira à vala as reses que
se abatem no hospital, me disse que a trazia ali. É boa! Se eu bem vi o saco...,
e cosido que ele vinha. A Ruiva em postas! Ria-se. Caíra tudo
num silêncio álgido. Calou-se, e depois: Também eu hei de morrer. Quero lá
saber nada daquela grande velhaca! Vamos, disse eu. Há uma coisa pior que um
cão danado: é um coveiro bêbedo. E saí. Um dia antes, o meu escalpelo penetrara
o corpo dessa perdida criatura, que veio a fornecer subsídios notáveis à minha
tese inaugural. Inquiri pormenores. Disseram-me que o tio Farrusco fora casado
com uma vendedeira, a Marta, muito conhecida por Buenos Aires. Soube-se depois
que as hortaliças que esta mulher vendia eram pelo marido plantadas no
cemitério, para lá da
vala e longe das vistas dos indiscretos, hortaliças que com o tempo e o belo
tempero da terra adquiriam grande desenvolvimento. Se lhas gabavam, Marta
retorquia: Ai!, bom dinheiro custam, freguesa. Vêm todas as manhãs de Odivelas,
uma estopada que eu sei!... E explicava que um cunhado, da quinta do senhor
marquês de Borba, tinha seu vintém e um bocadinho de terra.
É no Alto de
S. João que se sepultam os cadáveres do hospital; para o nosso caso, porém,
isso não importa onde se faziam os belos nabos e aquelas lombardas folhudas.
Caro, tudo pelas últimas, dizia pondo a sogra, os cordões a luzir no peito. Carolina
nasceu no dia da morte da mãe. Até ali, o coveiro vivera sem misérias, mas,
morta a mulher, descobriu-se donde vinham as couves e ninguém mais lhas
comprou. Não se sabe como a pequena se criara, mas aos doze anos era bonita, franzininha,
o nariz arrebitado, descalça e cheia de remendos. E, sem consciência do que
via, acompanhava o pai na sinistra ocupação de sepultar os mortos. Assim
crescera. Naquela miseranda existência entrara a criar predileções. Começou a
amar principalmente os mortos que paravam à porta do cemitério em ricas
berlindas douradas, entre filas de gatos-pingados lúgubres, de
tochas acesas, e puxadas por seis parelhas cobertas de crepes. Visitava-os na
casa das observações, acocorada a um canto, com o olhar absorto, durante as
vinte e quatro horas que os caixões ali passavam abertos, e onde contemplava,
deitados na pétrea imobilidade derradeira, os que na sua vaidade egoísta,
corruptos e miasmáticos, iam habitar em sepulcros de mármore, com figuras
sentimentais na fachada e pomposas inscrições nas lápides. Pode dizer-se que aprendeu
a ler no cemitério, quando curiosa na sua pobreza esfrangalhada queria saber os
nomes e posições ocupadas no mundo pelos que habitavam aquela branca cidade de
mármores, de que se julgava rainha». In Fialho de
Almeida,
A
Ruiva e Outras Histórias,
1881, Contos, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ISBN 978-972-370-963-6.
Cortesia de
LLivros/JDACT