Celeste uitam in
terra positus agebat, narrar o
sagrado, verbalizar a santidade. Textos hagiográficos dos séculos VII a XIII
«No último quartel do século XII,
um religioso do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra compôs uma biografia sagrada
de Teotónio, primeiro prior daquela casa, morto alguns anos antes, em 1162. Talvez uma das mais elaboradas
hagiografias medievais portuguesas, e a que apresenta maior cultura e talento
literário, é um texto cujo estatuto escapa às categorias modernas. Para o
Autor, não se tratava só de compor uma biografia, propor um modelo pastoral, ou
tão pouco redigir uma ambiciosa obra própria. Aquilo que testemunhara e ia
relatar impunha uma outra atitude, numa missão decerto solene, mas
insignificante face ao sobrenatural a que dizia respeito. É que Teotónio fora
um santo. E a santidade representou, para a civilização medieval, o mais nítido
lugar da inscrição do eterno no presente. Uma tal perspectiva condiciona de
modo decisivo a narrativa. Insere-a num plano que ultrapassa a simples escrita
e se abre para a relação que esta tece com o Divino a relatar. Apresentar um
santo era narrar o encontro humano com Deus. Era manter aberta a fronteira
entre as Duas Cidades, que o santo abolira: na feliz síntese do seu anónimo
biógrafo, Teotónio, colocado na terra, levava uma vida celestial (celestem
uitam in terra positus agebat). Era ter a capacidade de sobrenaturalizar realidades bem
concretas, como a que rodeara Teotónio, que todos conheciam. Através de uma
alegoria que abre o caminho à verdadeira leitura, resume-se, já no fim do
texto, toda a lide do santo prior: Teotónio chefia uma multidão de homens
vestidos de branco que, colocados numa eira, lutam contra as ondas do mar
circundante. Termo a termo, o Autor declina sabiamente uma precisa explicação: a
eira é o mosteiro de Santa Cruz, os homens de branco são os monges, e o mar,
esse, é a cidade de Coimbra, ou o mundo. Assim, pois, a Coimbra da
Reconquista, esse meio fervente de actividade e dos acesos conflitos que em
algumas passagens o texto refere (os Moçárabes capturados pelo rei e soltos
a instâncias de Teotónio, as facções que rodeavam Afonso Henriques, os clérigos
que se opõem à nova fundação...) é, no fundo, um cenário quotidiano que apenas
alguns sabem decifrar.
Na tradição do que se
convencionou designar por hagiografia, este texto desafia leituras directas.
Todavia também não se pode interpretar apenas por meio de simples
identificações inter-textuais ou da sua integração num género literário. Na realidade, é um texto cultual, um tratamento integrado e intencional dos
elementos biográficos de um homem singular. Considerado de excepção por todos
os contemporâneos, fora mesmo objecto de uma canonização episcopal logo um ano
após a sua morte, deverá ser, para alguns deles, colocado no seio de uma tradição narrativa crucial ao cristianismo
medieval, as vidas de santos. Precisemos. Para
alguns, exactamente aqueles que estabeleciam a ponte entre passado e futuro
por via da escrita, base da continuidade da Igreja e instrumento da sua coesão
e superioridade: não fora o Cristianismo
fundado sobre um relato de uma vida, a de Cristo, muito mais que sobre
preceitos soltos? Avancemos ainda um pouco: não se trata de uma escrita
qualquer, administrativa ou legal. Essa era domínio de outros especialistas,
menos versados em algo de fundamental, o próprio poder religioso da
escrita, a sua capacidade para transmitir experiências sagradas anteriores,
para unificar, conferir sentido, garantir exemplaridade; ou seja, os que
trabalhavam com o elo entre Deus e a palavra, forma visível do mistério da
Criação. Voltando ao campo específico da hagiografia: os que criavam os
santos para a posteridade.
Não
de um modo mecanicista, manipulador da crença dos leigos. Afastemos, de novo, leituras simplistas. Estes biógrafos do
sagrado sabiam que a manifestação do Divino que fora a vida do santo só
perduraria depois da sua morte, como exemplo actuante, dinâmico e gerador de sucessores,
se estivesse também então penetrado pelo Divino. Se estivesse inserida na
corrente da Palavra, escrita e oral, que as Sagradas Escrituras transmitiam. A
tarefa principal destes cronistas do
sagrado era, pois, a de fazer a crónica das irrupções divinas na história
humana. Só compreenderemos a evocação narrativa do sagrado como um dos
fundamentais processos constituintes do Cristianismo, se trabalharmos com a
premissa coetânea, geradora de um dos mais intensos debates da teologia medieval,
da ligação entre o real, a linguagem e a Essência. Deus estava presente nas
Escrituras, nas obras dos padres da Igreja, nas Actas de Mártires e nas Vidas
de Santos; a composição de um novo exemplo fazia-se justapondo temas, frases e
palavras deste corpus com os dados biográficos do bem-aventurado em
causa». In Maria de Lurdes Rosa, A Santidade no Portugal Medieval, Narrativas e
Trajectos de Vida, Celeste uitam in terra positus agebat, narrar o sagrado, verbalizar a santidade, Textos hagiográficos dos
séculos VII a XIII, Departamento de História da FCSH/UNL; CEHR/UCP. Lusitania Sacra, 2ª série, 13-14 (2001-2002).
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