terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

A Santidade no Portugal Medieval. Narrativas e Trajectos de Vida. Maria de Lurdes Rosa. «Era manter aberta a fronteira entre as Duas Cidades, que o santo abolira: Teotónio, colocado na terra, levava uma vida celestial (celestem uitam in terra positus agebat)»

Cortesia de wikipedia

Celeste uitam in terra positus agebat, narrar o sagrado, verbalizar a santidade. Textos hagiográficos dos séculos VII a XIII
«No último quartel do século XII, um religioso do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra compôs uma biografia sagrada de Teotónio, primeiro prior daquela casa, morto alguns anos antes, em 1162. Talvez uma das mais elaboradas hagiografias medievais portuguesas, e a que apresenta maior cultura e talento literário, é um texto cujo estatuto escapa às categorias modernas. Para o Autor, não se tratava só de compor uma biografia, propor um modelo pastoral, ou tão pouco redigir uma ambiciosa obra própria. Aquilo que testemunhara e ia relatar impunha uma outra atitude, numa missão decerto solene, mas insignificante face ao sobrenatural a que dizia respeito. É que Teotónio fora um santo. E a santidade representou, para a civilização medieval, o mais nítido lugar da inscrição do eterno no presente. Uma tal perspectiva condiciona de modo decisivo a narrativa. Insere-a num plano que ultrapassa a simples escrita e se abre para a relação que esta tece com o Divino a relatar. Apresentar um santo era narrar o encontro humano com Deus. Era manter aberta a fronteira entre as Duas Cidades, que o santo abolira: na feliz síntese do seu anónimo biógrafo, Teotónio, colocado na terra, levava uma vida celestial (celestem uitam in terra positus agebat). Era ter a capacidade de sobrenaturalizar realidades bem concretas, como a que rodeara Teotónio, que todos conheciam. Através de uma alegoria que abre o caminho à verdadeira leitura, resume-se, já no fim do texto, toda a lide do santo prior: Teotónio chefia uma multidão de homens vestidos de branco que, colocados numa eira, lutam contra as ondas do mar circundante. Termo a termo, o Autor declina sabiamente uma precisa explicação: a eira é o mosteiro de Santa Cruz, os homens de branco são os monges, e o mar, esse, é a cidade de Coimbra, ou o mundo. Assim, pois, a Coimbra da Reconquista, esse meio fervente de actividade e dos acesos conflitos que em algumas passagens o texto refere (os Moçárabes capturados pelo rei e soltos a instâncias de Teotónio, as facções que rodeavam Afonso Henriques, os clérigos que se opõem à nova fundação...) é, no fundo, um cenário quotidiano que apenas alguns sabem decifrar.
Na tradição do que se convencionou designar por hagiografia, este texto desafia leituras directas. Todavia também não se pode interpretar apenas por meio de simples identificações inter-textuais ou da sua integração num género literário. Na realidade, é um texto cultual, um tratamento integrado e intencional dos elementos biográficos de um homem singular. Considerado de excepção por todos os contemporâneos, fora mesmo objecto de uma canonização episcopal logo um ano após a sua morte, deverá ser, para alguns deles, colocado no seio de uma tradição narrativa crucial ao cristianismo medieval, as vidas de santos. Precisemos. Para alguns, exactamente aqueles que estabeleciam a ponte entre passado e futuro por via da escrita, base da continuidade da Igreja e instrumento da sua coesão e superioridade: não fora o Cristianismo fundado sobre um relato de uma vida, a de Cristo, muito mais que sobre preceitos soltos? Avancemos ainda um pouco: não se trata de uma escrita qualquer, administrativa ou legal. Essa era domínio de outros especialistas, menos versados em algo de fundamental, o próprio poder religioso da escrita, a sua capacidade para transmitir experiências sagradas anteriores, para unificar, conferir sentido, garantir exemplaridade; ou seja, os que trabalhavam com o elo entre Deus e a palavra, forma visível do mistério da Criação. Voltando ao campo específico da hagiografia: os que criavam os santos para a posteridade.
Não de um modo mecanicista, manipulador da crença dos leigos. Afastemos, de novo, leituras simplistas. Estes biógrafos do sagrado sabiam que a manifestação do Divino que fora a vida do santo só perduraria depois da sua morte, como exemplo actuante, dinâmico e gerador de sucessores, se estivesse também então penetrado pelo Divino. Se estivesse inserida na corrente da Palavra, escrita e oral, que as Sagradas Escrituras transmitiam. A tarefa principal destes cronistas do sagrado era, pois, a de fazer a crónica das irrupções divinas na história humana. Só compreenderemos a evocação narrativa do sagrado como um dos fundamentais processos constituintes do Cristianismo, se trabalharmos com a premissa coetânea, geradora de um dos mais intensos debates da teologia medieval, da ligação entre o real, a linguagem e a Essência. Deus estava presente nas Escrituras, nas obras dos padres da Igreja, nas Actas de Mártires e nas Vidas de Santos; a composição de um novo exemplo fazia-se justapondo temas, frases e palavras deste corpus com os dados biográficos do bem-aventurado em causa». In Maria de Lurdes Rosa, A Santidade no Portugal Medieval, Narrativas e Trajectos de Vida, Celeste uitam in terra positus agebat, narrar o sagrado, verbalizar a santidade, Textos hagiográficos dos séculos VII a XIII, Departamento de História da FCSH/UNL; CEHR/UCP. Lusitania Sacra, 2ª série, 13-14 (2001-2002).

Cortesia da FCSH/CEHR/UCP/JDACT