«Sempre o
mesmo olhar doloroso! Uma constante expressão de mágoa, esse abandono, que é o
tédio da vida! Porque é que na flor dos anos, quando a existência se perpétua com
todas as graças que se entrevêem apenas em sonho e se veste das alegrias que a
rodeiam, como uma criança enfeitando-se distraída com as florinhas espontâneas,
tu, bela, sentida, deixas reflectir pela transparência da tua face pura um
clarão pálido e incerto como de agonias e desespero, como a fosforescência de
um grande mar que estua?
Diante de ti sente-se uma opressão estranha, a mudez sagrada de uma grande
floresta, o terror gélido, de quem entra na caverna de uma sibila. Porque é que
os teus vinte anos, as formas arrebatadoras do teu flexuoso corpo de sílfide,
que verga pela dor, mais lânguido e gentil do que a palmeira solitária embalada
nas bafagens mornas vindas da amplidão remota do deserto, como é que toda esta
adolescência, que te cinge como auréola de encanto e atractivos, me faz ter
medo de ti, me prende a voz temerosa e balbuciante, que ousa às vezes
perguntar-te: Donde vieste? Em que penas? Que véu te acena e está chamando de longe?
Porque te escondes dos olhos que choram de ver-te assim desolada, na consternação
de uma angústia intraduzível por
palavras humanas? Porque não
falas, e nos contas o que sofres? Porque te deixas ficar horas
esquecidas com a mão firmada ao rosto, suspensa numa contemplação divina,
irradiante, de um modo, que ninguém ousa dizer se és da terra, se és a
incarnação de alguma essência arcangélica que anda errante no mundo a santificar o amor no sofrimento? Ás
vezes o teu rosto, onde se pode ler um enigma que se não destrinça, tem a
lividez de cera, e a claridade que parece conter em si o jaspe. Então julgo
ver-te uma santa, sob o aspecto de penitente que acha em cada sucesso da vida
uma tentação oculta nas aparências mais risonhas, no folguedo mais descuidado e
inocente, do mesmo modo que o áspide se esconde no alegrete das mais perfumadas
flores ou o sono letal na sombra da mancinela verdejante e copada, aberta ao
sol, como uma escrava sustentando a umbela com que abriga do rigor das calmas a
voluptuosa odalisca.
Os vinte
anos são a alegria, a inocência, a expansão; ainda não viveste bastante para
provar o travo amargo da vida, não sabes conhecer a tormenta que há de vir pela
nuvem que negreja, nem a bonança pelo santelmo, nem os parcéis pelo refluxo da
vaga marulhosa, nem o porto pelo perfume embalsamado da terra. Tu passas na
vida como um meteoro fulgurante que não procura aonde irá cair, como uma
criatura sonâmbula que não vacila, não hesita diante do abismo que transpõe,
nem deixa possuir-se da atracção irresistível porque a desconhece. A vida é
assim para ti; passas despreocupada do mundo, levada na ondulação saudosa
dessas vozes interiores que te segredam mistérios indefiníveis que fazem sentir
o desejo de voar para o alto, até perder-se no azul. Os teus cabelos, quando os
deixas cair destrançados sobre os ombros de marfim, agitados pela brisa
vespertina que vem confidenciar contigo à janela, que olha para o ocidente,
esses cabelos louros, extensos, são como as cordas de uma harpa, em que as
imagens incoercíveis dos teus pensamentos vêm falar do céu, do amor, no frémito
ligeiro, quase imperceptível das vibrações que só tu compreendes.
Consternada
e muda como uma estátua, a Níobe grega, o teu silêncio incute uma
sublimidade profética; parece guardar a impressão do selo mais tremendo do
Apocalipse, a missão da mulher forte. Quem sabe se é o amor que a transporta
assim para as solidões, como a pomba
que vai esconder-se na rocha alcantilada? O amor que esmalta a vida de
harmonias e encantos, que acorda as virações para levarem longe o pólen
fecundante, que abre o cálice das flores para as abelhas tocarem os nectários
deliciosos, que une o gemido do regato trépido com o ruído, brando que
adormece, do canavial que orna as
margens sinuosas? O amor é um amplexo, a identificação; como poderia
divorciá-la com a vida, mudar a sua alegria numa tristeza que é como o pressentimento do sepulcro?
Aquele segredo incomunicável oprime, aterra como a esfinge propondo o enigma. Ela cada vez andava mais desfalecida, pendia
de cansaço, ofegava; mas procurava iludir os desvelos da família com um vigor
que não tinha, como sucede ao náufrago quase a aferrar a terra, de que a
ressaca da onda o afasta, e que hesita se deve lutar mais tempo, se deixar-se
engolir nas voragens do oceano. Gravitaria ela em volta de um mundo em que
procurasse absorver-se, e a vida da terra, de cá, fosse como o refluxo que a impelia para longe?
Pobre
flor, que se debruça nas bordas da sepultura, será uma ilusão quanto a sua alma ingénua sente? Serão uma
mentira todas as harmonias que se
modulam lá dentro? O tapiz verde da relva fresca, lúbrica, que a chama
para vir doidejar ali num volteio feérico, febril, esconder-lhe-á o lodo de um
charco estagnado que a há de engolir
para sempre? Tenho medo de vê-la assim, com os olhos fitos no
horizonte, nessa morbidez do êxtase; a vertigem pode sacudi-la, e
precipitar-se, como a borboleta prateada e indiscreta. A sua alma eleva-se para
o céu; porque voa tão cedo para cima a névoa da madrugada, de uma alvura nitente? A
andorinha quando parte, voa na asa da rajada hibernal que a arrebata. Mas o mundo acariciou-a sempre; porque se esconde pois e foge dele?
Será a reminiscência viva do foco de luz donde saiu, que lhe inspira tamanha
ansiedade, e lhe abre na alma uma saudade vivíssima, que mata? Às vezes está tranquila, imóvel, como quem escuta
a toada de um concerto mavioso que embala e com que se adormece. Oh, quem ousará despertá-la?» In Teófilo
Braga, Contos Fantásticos, 1865, As Asas Brancas, Luso Livros, Nova Forma de
Ler, 2010, ISBN 978-989-844-704-3.
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