Universos
Sonoros da Escrita. Música e dialéctica da escuta
«Parto
de uma reflexão critica sobre as infraestruturas da comunicação musical,
relacionando-as com a investigação recente acerca das origens da comunicação
humana. Na minha perspectiva, a comunicação musical, ora pode subsumir-se ou
incorporar-se em sistemas de comunicação mais abrangentes, com
autorreferencialidade e autorregulação específicas, neste caso, a música
apresenta-se-nos apenas como um elemento ou um segmento entre outros que regem
o sistema (por exemplo, o da liturgia ou outros rituais), ora pode
constituir-se ela própria, enquanto tal, como sistema autorreferencial e
autorregulado, e já não subordinado ou subalterno relativamente a outros
sistemas de comunicação. Esta última variante surge gradualmente na cultura
europeia desde a invenção da notação e da composição e culmina com uma mudança
de paradigma na estrutura e na função da comunicação musical, processo que
ocorre em meados do século XVIII em conexão estrutural com o desenvolvimento da
economia de mercado e da esfera pública burguesa. Fazer música e ouvir
música não perdem, desse modo, o seu carácter de acção ou comunicação
sociais, nem deixam de se relacionar com sistemas de comunicação extramusicais. O que acontece é a emergência
de um novo sistema autorreferencial, o musical, no qual o processo da
significação ou produção de sentido se torna crescentemente autorregulado. Como
qualquer sistema autorreferencial, a música assim dita autónoma, ao
desenvolver a sua autorregulação específica, traduz no seu próprio
código os inputs que recebe de outros sistemas autónomos de comunicação
em que as sociedades mais complexas se diferenciam funcionalmente. Ou seja: a
produção de sentido ou a significação musicais deixam de ser ditadas
heteronomamente, por códigos de outros sistemas sociocomunicativos, como, por
exemplo, o da religião ou o da esfera pública representativa da sociedade da
corte.
Particularmente
relevantes desde a constituição da música como sistema autorreferencial são as
suas interacções com a esfera da educação, esfera em que a música passa a
desempenhar um papel tanto ou mais importante do que as outras artes, a
filosofia ou a ciência. A música autónoma abre-se a todos os aspectos da
experiência social e humana, que passam a ser potencialmente objecto da música
e duma cultura da escuta, isto é, podem ser traduzidos em termos musicais tal
como o podem ser em termos filosóficos, científicos, políticos, religiosos, etc..
A música coloca-se no mesmo plano destas outras modalidades de comunicar, agir,
exprimir, conhecer, com as quais pode, aliás, manter um diálogo mais ou menos
profundo ou intenso (o leque de conexões estruturais entre sistemas ou
subsistemas em que a sociedade se organiza é muito amplo e variado). Partilhar
experiência humana e social através da
música em si corresponde a uma nova função, e não a uma ausência desta.
Contudo, o desenvolvimento histórico da economia de mercado, que contribuiu decisivamente
para a constituição da música como sistema de comunicação autónomo, parece
estar a levar, cada vez mais, nos nossos dias, dialecticamente, à liquidação
deste.
As
origens da comunicação humana
Que
há de comum entre o canto gregoriano na missa, a música vocal e/ou instrumental
numa corte do antigo regime, as encomendações das almas no ritual fúnebre duma
comunidade rural, as cantigas de romaria numa festa popular, um canto de
trabalho, uma serenata cantada à namorada com acompanhamento de guitarra, uma tarantela dançada até à exaustão?
Os exemplos seriam inumeráveis, quer recuando na história, quer olhando à nossa
volta para a grande variedade da experiência musical, para situações em que
aquilo a que chamamos música (cantar ou tanger instrumentos, muitas vezes
marchando ou dançando) surge como parte integrante de um todo holístico, do
qual aquela não é propriamente destrinçável. Desde os tempos mais remotos,
segundo os vestígios arqueológicos, parece não ter havido comunidades humanas
que não tenham explorado a comunicação através do som, utilizando para o efeito
não só a voz, mas também instrumentos para o efeito fabricados. Muitas
especulações tem havido quanto ao papel da comunicação sonora na antropogénese.
Rousseau é um dos filósofos que dão prioridade à expressão sonora, ao lado da
gestual, na comunicação humana. Gesto e som eram, para Rousseau, o dicionário da simples natureza, um tipo
de comunicação dir-se-ia analógica, que teria precedido o processo
evolucionário de invenção da palavra, da atribuição arbitrária (ou digital) de
correspondências entre sons vocais e objectos por estes designados, isto é,
anterior à emergência da linguagem articulada, com a sua gramática, a sua
morfologia e a sua sintaxe». In Mário Vieira Carvalho, Escutar a
Literatura, Universos Sonoros da Escrita, Edições Colibri, Universidade Nova de
Lisboa, CESEM, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-689-427-6.
Cortesia
EColibri/JDACT