«O duplo casamento efectuado em 1785 entre dois filhos de dona Maria I
(1734-1816/1777-1816)
e do rei consorte Pedro III (1717-1786), o infante João (1767-1826)
e a infanta dona Mariana Vitória Josefa (1768-1788), com dois membros da Casa
Real de Espanha, respectivamente a infanta dona Carlota Joaquina de Bourbon (1775-1830),
filha dos príncipes das Astúrias, e o infante Gabriel António Francisco Xavier
Bourbon (1752-1788), filho do rei de Espanha Carlos III (1716-1788)
e da rainha dona Maria Amália da Saxónia (1724-1760), motivaram grandes
festejos nos dois reinos peninsulares. Nas manifestações de júbilo de 1785, que se inserem no designado cycle humain individuel de la famille
régnante, encontramos a permanência do esquema da festa barroca. Esta, cujo
mecanismo político/artístico se estruturou a partir do Renascimento, com formas
herdadas do passado romano e medieval, encontrou nos séculos XVII-XVIII, as
épocas da sua total identificação com o poder. O rei, e por extensão a família
real, é o actor/espectador por excelência de um ritual complexo, que o
mitifica perante uma nobreza dependente da sua liberalidade grandiosa, e um
povo quase ausente do seu quotidiano e que apenas o vislumbra. Pela festa, consequência
de motivações diversas, nascimento, casamento, aniversário, morte, entrada
pública, coroação, vitória militar, o monarca torna-se num objecto de culto.
Lugar tenente de Deus na terra, e a quem Deus designa como divino, no conceito de Jaime I (1566-1625), rei da Escócia
(1567-1625),
da Inglaterra e Irlanda (1603-1625), expresso no Basilikon
Doron (Edimburgo, 1599), o soberano vai ser o centro
da festa barroca, metamorfoseando-se, por vezes, numa divindade,
Febo-Apolo/Luís XIV (Ballet royal de la Nuit, dançado pelo rei em 1653),
ou presidindo a um Olimpo familiar, como Jean Nocret (1615-1672) representa
Luís XIV (1638-1715) e a sua família. A festa, como imagem do poder,
reproduz-se no Ancien Régime nos diversos poderes que o constituem, com
programa e impacto proporcional à importância do motivo festivo; da mesma
forma, o espectáculo/imagem do poder, que atingiu o modelo acabado no
Barroco, será mantido nos séculos seguintes com as diferenças próprias de cada
época, com momentos de grande esplendor.
Referidas as motivações, várias
questões se levantam em relação à festa barroca relacionada com o poder centrada
no mundo português. Se a capital, e principalmente o lugar onde está a corte, é
o espaço onde se realizam as principais festividades, estas vão ter repercussão
em todo o território. Numa época em que os monarcas quase não se deslocavam, restringindo
as suas saídas a uma área limitada à volta da capital, aos espaços das caçadas
e excepcionalmente a locais de peregrinação e termais, os momentos festivos
serviam para unir todo o território europeu e as colónias à volta da família Real,
reforçando assim a ligação natural
entre vassalos e os seus soberanos. O despoletar de todo o processo festivo,
após a chegada da carta régia que o anuncia, é promovido pelas autoridades locais
(Senado da Câmara, Provedor da Comarca, autoridades eclesiásticas e
militares) que, além de serem os principais organizadores do programa, vão
motivar outras instituições (academias e irmandades) e particulares (nobreza
e negociantes estrangeiros), a participar com outras realizações.
O programa era constituído por
festas religiosas (tríduos, missas, vésperas, procissões) e profanas (touradas,
cortejos, representações teatrais, música e canto, danças e bailes, serenatas,
encamisadas, cavalhadas, banquetes e refrescos, luminárias, fogo de artifício),
que tinham como palco preferencial o mundo urbano, tanto nos seus espaços
abertos (praças, ruas, jardins), como nos espaços fechados (igrejas,
palácios, teatros). Apontadas algumas das questões relacionadas com a
festa, todas elas constituindo um frutuoso campo de estudo, queremos ainda
referir que para a sua concretização são mobilizados escritores, poetas,
pintores, escultores, cenógrafos, costureiros, entre outros criadores, assim
como artistas e artífices, menos conhecidos, contribuindo todos, através dos
seus textos e das montagens efémeras, para a glória do motivo festejado, para a
afirmação da sua vassalagem, e para, no tempo festivo, uma parte da população
se esquecer das dificuldades de um quotidiano. Toda esta realidade se repetiu
nas festividades de 1785 que,
ultrapassando Lisboa/Vila Viçosa-Madrid/Aranjuez, os principais locais
em que foram vividas, se estenderam do Minho ao Maranhão. O Porto, sendo a
cidade depois da capital, a mais illustre
do Reino pela sua opulência e grandeza, aproveitou, através da festa
apologética do poder, para mais uma vez mostrar a lealdade e amor, que sempre tributou aos seus soberanos.
Festejos no
Porto (11 a 29 de Junho de 1785)
Ainda
que o duplo consórcio se tenha realizado entre Março/Abril de 1785, só em 10 de Junho é que o
Corregedor e Provedor da Comarca do Porto, Francisco Almada Mendonça (1757-1804),
recebeu a carta régia, pela qual era informado dos Augustos Desposorios dos Sereníssimos Infantes, e na qual se
solicitava que fosse dado conhecimento da alegre
noticia ao Senado da Câmara, e se recomendava que se fizessem aquellas demonstrações de jubilo, que a
fidelidade dos póvos costuma manifestar em similhantes ocasiões». In
Joaquim Jaime B. Ferreira Alves, Festejos
no Porto pelos casamentos dos príncipes João com dona Carlota Joaquina Bourbon
e e de dona Mariana Vitória com Gabriel Bourbon, CEPESE. Universidade do Porto, História de Portugal, Século XVIII, FLUP,
2014, 000 207 130.
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