Universos
Sonoros da Escrita. Música e dialéctica da escuta
«(…)
Dir-se-ia que a hipótese de Rousseau, que em todo o caso defende a maior
proximidade à natureza da linguagem gestual, é em parte confirmada na obra de
Michel Tomasello, origins of Human
Communication, publicada em 2008,
onde o autor sintetiza as conclusões a que tem chegado ao longo de anos de
observação e experimentação com grandes símios, confrontando-as com a
investigação em curso sobre a comunicação com recém-nascidos ou crianças com
poucos meses de idade. Segundo as investigações de Tomasello, é no gesto,
no gesto de apontar, no gesto de mostrar, que reside o fundamento originário da
comunicação humana. Tomasello opõe-se, pois, àqueles que vêem antecedentes da
comunicação falada nas vocalizações dos símios ou que, como Georg Knepler (1982),abordam
a antropogénese como um processo ao longo do qual um único sistema de comunicação
acústica se subdividiu em dois: fala e
música. Tomasello conclui das suas observações que as vocalizações dos
grandes símios são de natureza filogenética e se mantêm inalteradas, mesmo quando
eles são submetidos a um contacto intensivo com os humanos, ao passo que os
gestos são do domínio da ontogénese, susceptíveis de aprendizagem cultural. E
essa aprendizagem que está, por sua vez, inscrita evolucionariamente na infraestrutura
psicológica oculta, altamente complexa, da intencionalidade partilhada,
exclusiva da espécie humana, no âmbito da qual os humanos usam os seus gestos
para construir um modelo cooperativo de
comunicação. Este é o ponto que, segundo Tomasello, marca a diferença
entre os grandes símios e os humanos: os símios apontam, mas não cooperam
no gesto de apontar; os humanos apontam
e cooperam indissociavelmente.
O
fundacional na comunicação humana não está, pois, segundo Tomasello, no código
ou nas convenções, mas sim noutras formas em que se manifesta a
intencionalidade partilhada e o propósito cooperativo: nos gestos naturais de
apontar e mimar. Os gestos humanos emergiram evolucionariamente a partir dos
gestos dos símios e abriram caminho à completa convencionalização das
linguagens humanas. Do ponto de vista psicológico-funcional, Tomasello indica
dois tipos básicos de comunicação baseados no gesto de apontar e/ou mimar:
- Dirigir a atenção do receptor espacialmente para algo no meio-ambiente imediatamente percepcionado (gesto deítico, usado pelas crianças desde a mais tenra idade);
- Dirigir a imaginação do receptor para algo não presente no meio-ambiente imediatamente percepcionado, através da simulação comportamental de uma acção, relação ou objecto (isto é, por via icónica ou da pantomima): induz-se o receptor a imaginar um referente ausente do campo da percepção ou acções que não estão a ocorrer nesse momento.
Enquanto
os grandes símios solicitam coisas usando sinais ritualizados, compreendem
intenções e percepções, raciocinam na prática sobre elas, os humanos somam a essas
competências mais duas componentes: novos motivos de ajuda e partilha; nova
aptidão para imitar acções (incluindo a aptidão para reverter o papel, role
reversal, dando origem a gestos icónicos e convenções comunicativas». In
Mário Vieira Carvalho, Escutar a Literatura, Universos Sonoros da Escrita,
Edições Colibri, Universidade Nova de Lisboa, CESEM, Lisboa, 2014, ISBN
978-989-689-427-6.
Cortesia
EColibri/JDACT