«Parece impossível determinar-se
quem haja sido o primeiro europeu fixado na costa paulista e no lagamar
santista. De quantos, cujos nomes sobreviveram, imortal relevo a um coube pelos
méritos excepcionais de civilizador e povoador: João Ramalho, que, talvez por volta
de 1515, haja pisado em terra
brasileira, não se sabe como nem por quê. Outros brancos, assaz numerosos para
o tempo, umas poucas dezenas talvez, quase todos portugueses, congregaram-se
nas cercanias de São Vicente e mantiveram contacto com Manuel I e João III, o
que determinaria a expedição de Martim Afonso Sousa e a consequente fundação
oficial, da primeira povoação estável
do Brasil, a de 22 de Janeiro de 1532. Desde anos morador de Serra Acima, na região de Piratininga,
foi João Ramalho o grande agente do êxito da colonização que surgia. Em 1536 encetou Brás Cubas as primeiras
edificações de Santos. Dos emigrados com Martim Afonso diversos galgaram a
Serra de Paranapiacaba atraídos pelo clima e as vantagens rurais
estabelecendo-se nos campos de Piratininga a exemplo e em torno de Ramalho. Em 1549, instalou-se o Governo-Geral do
Brasil. Em companhia do primeiro Governador chegaram Manuel Nóbrega e os
jesuítas missionários de quem era o chefe. Pouco depois para São Vicente partiu
o padre Leonardo Nunes, que em 1550
ali fundou o novo Colégio da Companhia, encetando com extraordinário vigor a
obra catequística entre os numerosos gentios de Serra Acima. Decidiu Nóbrega
realizar uma fundação bem no interior das terras e assim criou a missão de
Maniçoba, na região de Itu. Em 1553,
resolveu Tomé Sousa conceder foral de vila a um arraial de João Ramalho na
região piratiningana, ordenando que se elevasse em torno de uma ermida
consagrada a Santo André. Efectivou- se tal acto sendo Ramalho nomeado capitão-mor
e alcaide-mor do campo, do seu novo azemel. Informado das condições que regiam
o altiplano, Manuel Nóbrega, que viera a São Vicente, entendeu que a missão de
Maniçoba se achava muito afastada do mar, ordenando-lhe a transferência para
perto do núcleo ramalhense. Já em Agosto de 1553 fixara tal resolução, escolhendo o local onde queria se erguesse
o primeiro colégio da sua Companhia, fundado no interior das terras brasileiras.
Foi nesse local que o padre
Manuel Paiva, superior da nova missão, celebrou a 25 de Janeiro de 1554, a famosa missa evocadora da
conversão do Apóstolo das Gentes, acto inicial da existência do pequenino
arraial de São Paulo do Campo de Piratininga, vila em 1560 e cidade em 1711. A
esta cerimónia inesquecível realizada no local chamado o Pátio do Colégio, assistiu
um noviço de vinte anos, a quem caberia o epíteto glorioso de Taumaturgo do
Brasil e as honras dos altares: o venerável José Anchieta. Encetou São
Paulo a vida protegida pelo amparo do morubixaba guaianás de Inhapuambuçu,
homem do maior prestígio, Tibiriçá, o
guerreiro dos olhos encovados já afeiçoado aos brancos pelas relações de
sua filha, Isabel, com João Ramalho, de quem houvera vários filhos, contando já
considerável descendência. Aos invasores brancos e sobretudo aos jesuítas
dedicava grande afecto outro tuxaua, Caiubi, cacique da taba de Jeribatiba.
Mais esquivo do que estes grandes chefes talvez se mostrasse Pequerobi, maioral
de Ururaí, cuja filha, Antónia, era a mulher de António Rodrigues, povoador de
muito menor projecção do que seu grande companheiro de colonização. Infatigáveis
encetaram os jesuítas intensa obra de desbravamento e catequese, o que lhes
trouxe conflitos com os vizinhos, a começar por João Ramalho, dominados como
viviam eles pela mentalidade escravista avassaladora de todos os colonos da
América. Ergueu-se o pequenino e tosco Colégio inacino e, em torno desta cellula
mater da magnífica metrópole hodierna, agruparam-se as choças de alguns
brancos e suas progénies mamalucas. Mas os índios xenófobos circunvizinhos, não
viam com bons olhos o crescimento do vilarejo. Um próprio irmão de Tibiriçá, o
cacique Araraí, mostrava-se sumamente infenso à permanência dos brancos em seu
território. Em Março de 1560,
chegando o terceiro Governador-Geral a São Vicente, expuseram-lhe os jesuítas a
precariedade da posse do planalto. Assim, em Junho ordenou que todos os
civilizados se transferissem para junto do arraial jesuítico extinguindo-se
vila de Santo André da Borda do Campo, acertadíssima medida.
Encetou-se em 1560 a vida municipal de São Paulo
do Campo de Piratininga sob as mais graves apreensões. A 20 de Maio
de 1561 pedia a Câmara da nova vila ao
Governo-Geral, e com toda a instância, armas e reforço de povoadores à vista
das contínuas e fortíssimas agressões dos índios à sua aldeia mal amparada
pelas mais singelas e expugnáveis muralhas. Em Abril de 1562 agravou-se imenso a situação, sendo João Ramalho eleito pela Câmara
e povo, capitão da gente de guerra que devia enfrentar os índios agressores.
Afinal, a 10 de Julho de 1562,
após cinco dias do maior sobressalto pela angustiosa espera, investiam os
autóctones numa coligação de tribos guaranis, carijós e outros tupis, a que se
deu o nome de Confederação dos Tamoios. Comandavam aos assaltantes
Araraí e seu sobrinho Jaguanharo. Terrível o embate, repelido graças à bravura
dos assaltados, a quem comandavam João Ramalho e Tibiriçá e certamente à
superioridade embora ainda não muito considerável, na época, das armas de fogo
de tiro muito lento e pequeno raio de alcance. Contra si tinham os sitiados a
grande inferioridade do número de combatentes. Rechaçados os sitiantes com
grandes perdas, reiteraram o ataque a 11 de Julho com redobrado vigor.
Viram-se, porém, completamente derrotados e tomados de pânico debandaram,
perseguidos pelos vencedores; brancos e índios, fiéis aos seus abarés, que com
a maior serenidade tanto haviam cooperado na defesa da praça». In Alfredo Maria Adriano d Escragnolle Taunay, (1843
- 1899), Visconde de Taunay, História da cidade de São Paulo, publicado
originalmente em 1954, Projecto Livro Livre, 2014.
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