«(…) Voilà un beau prince.
A voz condescendente fez com que Joana
tivesse vontade de vomitar. Imaginou a cena na sala do trono do rei de França:
Filipe, após as três vénias de homenagem obrigatórias, cinco passos afastado do
rei, como era requerido, avançaria lentamente para o estrado onde o rei Luís,
seu senhor da Borgonha, estaria sentado, observando-o com gloriosa satisfação. E
Filipe não conseguiria compreender que, de cada vez que se humilhasse, acentuaria
a sua posição como vassalo do rei, encorajando Luís a promover a sua causa. Filipe
e os seus conselheiros mais íntimos haviam sido levados directamente à presença
do rei. Joana e Fonseca ficaram a
vê-los exibirem-se, quais pavões vaidosos, resplandecentes nos seus veludos,
cetins e jóias. Vedes como se mostram
superiores?, murmurou ela. E não têm um tostão, esperando
desesperadamente por um quinhão da futura riqueza de Filipe. Joana estava sentada numa antecâmara,
esperando a sua vez de ser apresentada. Fora assim durante toda a viagem por
França. O seu estatuto como princesa de Castela e, ainda mais importante, a
verdadeira herdeira legítima de toda a Espanha, nunca fora reconhecido. Era Filipe
quem era festejado. Nem uma única vez lhe haviam concedido o respeito e a honra
que eram seus por direito.
Saltou da cadeira a tremer de indignação, murmurando para o bispo de
Córdova, seu companheiro durante a longa viagem para Espanha: Não tolero isto
durante muito mais tempo. Filipe é tão estúpido. Não verá que se está a entregar nas mãos de Luís? E ter-se-á
esquecido de que foi neste país que a sua irmã Margarida foi mantida
prisioneira durante anos, depois de os franceses terem renegado o seu contrato de casamento? Como é que ele pode negociar com eles depois disto? Meu
Deus, há momentos em que parece não ter cérebro de espécie nenhuma! - A sua voz
endureceu. - Digo-vos mais, hão-de ver como eu, uma princesa com orgulho
espanhol, se vai apresentar a este rei francês. Fonseca, bispo de Córdova,
convidou-a a acompanhá-lo até ao outro lado da sala, afastando a sua voz alterada
das aias e de quem mais a pudesse ouvir. E dar-lhe-ia tempo de a acalmar. A
rainha Isabel enviara Fonseca à Flandres porque ouvira que Filipe se propunha
viajar sozinho para fazer o juramento da sucessão apesar do seu ódio a Espanha.
Isabel insistira que Joana devia
igualmente fazer a viagem, afinal era a futura rainha e Filipe apenas o consorte.
Sugeriu ainda que apenas a presença de Joana
era exigida na cerimónia. Isto foi firmemente rejeitado pelos conselheiros de Filipe.
Passados poucos dias após a chegada de Fonseca com a missiva de Isabel,
descobriu que ele não fazia segredo do facto de desejar tanto visitar Espanha
como ir para o inferno. Viu que negavam a Joana
todo o respeito, sofrendo muita indignidade. Ficou alarmado com o poder que
Chimay e Busleyden tinham sobre o arquiduque. Quanto à restante corte de
Filipe, achou-os desprezíveis, uma observação bastante caridosa. As suas
instruções para que apressasse a partida de Joana e Filipe foram difíceis de levar à prática mas por fim teve
êxito. Nos meses que entretanto decorriam era o capelão de Joana, conselheiro e amigo, tendo-a igualmente ajudado a reconstruir
o seu orgulho e dignidade. Oferecia-lhe compreensão e orientação sobre como
aprender a lidar com a ira e apoiava-a contra as ofensas e as injustiças.
Naquele momento fora de novo em seu socorro, oferecendo-lhe o braço para a
acompanhar num passeio calmante. Enquanto caminhavam, ela aliviou o que lhe ia
no íntimo como se estivesse no confessionário. - Em que é que me transformei? Filipe bate-me como se eu fosse
uma criada de servir. Compreendo agora que não me tem amor. Enganou-me pela última
vez, nunca mais. Como me recordo bem desse dia. Estive doente por vários dias
após aquela horrenda discussão por causa desta viagem e ele visitou-me no meu
santuário escurecido. Murmurou palavras melosas junto ao meu rosto sobre
compensar-me, dizendo que viria mais tarde aos meus aposentos e podíamos jantar
os dois e depois podíamos..., não precisei de mais nada. Mandei afastar as
cortinas, abrir as persianas e o sol jorrou, rejuvenescendo as taças e as
baixelas de prata, fazendo com que as traças dançassem num frenesim. Zayda,
cantando canções de amor, preparou um banho, lavou-me o cabelo e embrulhou-o
numa toalha perfumada. O ar ressumava a almíscar e laranjas. Nessa noite, eu e
Filipe estivemos de novo nos braços um do outro..., mas, sabeis, senhor bispo,
a verdade é que ele não veio à minha cama por me amar mas porque lho
aconselharam. Foi uma precaução contra a insistência da minha mãe em relação a apenas
eu estar presente. Os conselheiros dele tiveram medo. E tivemos outra filha.
Rezo a Deus que a mantenha em segurança, a ela, ao irmão e à irmã nas mãos de
Margarida de York». In Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial
Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.
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