«(…) Além da velha enrugada que vem todos os dias da aldeia, trotando
na sua mula, para fazer os arranjos domésticos, mais ninguém nos faz companhia.
A criança leva a vida feliz e plena de uma flor transplantada. Ainda não lhe
dei um nome, mas claro que a baptizei de Justine. Que outro nome lhe conviria? Quanto a mim, não me sinto
feliz nem infeliz; estou suspenso como um cabelo ou uma pena, na amálgama
nebulosa dos meus pensamentos. Falei da inutilidade da Arte mas esqueci-me de
reconhecer as consolações que ela proporciona. O alívio que deriva do género de
trabalho que produzo com o cérebro e o coração reside nisto: só no silêncio
activo do pintor ou do escritor é que a realidade pode ser reelaborada e
revelada no seu aspecto verdadeiramente significativo. As nossas acções
quotidianas nada mais são do que os ouropéis que velam o vestido de ouro, a essência da forma. É na sua arte que o
artista encontra, pela imaginação, um feliz compromisso com tudo quanto o feriu
na vida quotidiana, e não para escapar ao seu destino, como faz o homem vulgar,
mas para realizá-lo da forma mais adequada e completa que lhe for possível.
Senão, porque nos havíamos de ferir uns
aos outros? Não, a paz que eu procuro e que talvez venha a encontrar
jamais me será dada, nem pelos olhos de Melissa, onde a temperatura brilhava,
nem pelas pupilas ardentes e negras de Justine. Tomámos, todos nós, caminhos
diferentes; mas aqui, no grande primeiro desastre da minha idade madura, sinto
que a recordação delas enriquece e aprofunda, para além de todos os limites, os
confins da minha arte e da minha vida. Realizo-as de novo em pensamento; é
somente aqui, nesta mesa de pinho, colocada debaixo da sombra de uma oliveira e
sobranceira ao mar, que eu posso fazê-las reviver em toda a merecida pujança.
Assim, o sabor deste escrito ficará devendo alguma coisa aos seus modelos vivos,
ao seu hálito, à sua pele, à sua voz, que se virão mesclar na frágil trama da
memória humana. Quero ressuscita-las de tal modo que a dor se transmude em arte…
Talvez seja inútil tentar uma tal empresa, mas, de qualquer maneira, não posso
deixar de fazê-lo... Hoje, eu e a criança acabámos de construir a lareira da
casa, falando tranquilamente enquanto trabalhávamos. Falo-lhe como falaria comigo
mesmo se estivesse só; ela responde-me numa linguagem heróica de sua invenção.
Enterrámos debaixo da lareira os anéis que Cohen tinha comprado para Melissa,
de acordo com os usos da ilha. É uma forma de assegurar boa sorte aos
habitantes da casa.
Na época em que encontrei Justine, eu era quase um homem feliz. A
repentina intimidade com Melissa abrira-me uma porta, e essa intimidade não era
menos maravilhosa pelo facto de ser inesperada e totalmente imerecida. Como
todos os egoístas, eu não tolerava viver só; na verdade, o meu último ano de
celibato tinha-me enervado, a minha incapacidade para o governo doméstico, a
minha inaptidão para tratar de roupas, comida e dinheiro haviam concorrido para
me reduzir ao desespero. Estava farto dos meus aposentos infestados de
carochas, tendo por companhia um criado berbere, Hamid, o Zarolho. Melissa tinha derrubado as minhas frágeis defesas, não
pelas qualidades que geralmente se atribuem às amantes, encanto, beleza excepcional,
inteligência, mas em virtude daquilo a que chamo a sua caridade, no sentido grego
da palavra. Costumava vê-la passar, muitas vezes, recordo-me, pálida, puxando
para o magro, vestindo um modesto casaco de pele de foca e levando o seu cãozito
pela trela, no meio das ruas invernosas. As suas mãos de tuberculosa, marcadas
pelas veias azuis, etc. Os traços curvos e ousados das suas sobrancelhas davam
aos bonitos olhos um ar simultaneamente cândido e atrevido. Via-a durante
meses, mas a sua beleza taciturna não me excitava. Cruzava-me com ela todos os
dias quando ia ter com Baltasar ao Café Al Aktar, onde o digno homem me iniciava. Nunca pensei em que um dia me
viria a tomar seu amante. Sabia que ela tinha sido modelo no Atelier, profissão
pouco invejável, e que era agora dançarina; mais, sabia que era amante de um
velho peleiro, um vulgar e grosseiro negociante da cidade. Anoto estes
pormenores simplesmente para registar um aspecto da minha vida para sempre
afundado. Melissa! Melissa!» In Lawrence Durrell, Justine (Quarteto de
Alexandria), Editora Ulisseia, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-568-496-2.
Cortesia de Ulisseia/JDACT