Temas e
motivos poéticos
«Importância da linguagem enquanto instrumento de trabalho: poesia musica verbal; a melodia metafórica;
o ritmo; regularidades de ordem silábica, prosódia, de rima, frásica e into-nacional,
incidência nas ligações corpo-escrita-terra (ou outros elementos primordiais da
natureza); os quatro elementos míticos (fogo, água, ar, terra) metamorfoseados;
a natureza, as flores; busca da pureza essencial».
A metáfora em Eugénio de Andrade
A poesia
de Eugénio de Andrade é marcada por um lirismo puro, carregado de metáforas
luminosas que harmonizam o amor e os quatro elementos primordiais: água, terra,
ar, fogo2. Assim: Fogo: verão; Água:
fonte, rio, mar; Ar: vento, música, poesia. Terra:
ruralidade, casa, mãe, corpo, criança, pastor; reino vegetal (frutos, rosa...);
reino animal. Casa, lugar
da mãe e do corpo. A habitabilidade prediz o
preenchimento, a totalidade. A casa desabitada (porta fechada, casa na
chuva...), sinal da ausência da mãe, é lugar de desprotecção e abandono, e,
portanto, metáfora do vazio. Poesia
do Corpo: na minha poesia o corpo insurge-se, diz
coisas despropositadas, põe-se a blasfemar, chegando a pretender-se metáfora
do universo (Rosto Precário, 1979). Na poesia de Eugénio a importância do corpo
tornou-se um dos mais divulgados lugares comuns do ponto de vista da recepção
da sua obra. Mãe, a mãe surge como mediadora face ao
desejo (a mãe deseja o desejo para o filho) e à poesia, ao acesso à poesia. Repare-se
também na presença de certos aspectos da mitologia cristã ligados à mãe,
nomeadamente na sua sacralização,
essa fabulosa figura do sacrifício,
nas palavras do poeta, que lhe deu o conhecimento da poesia. Encontram-se
diversas marcas que podem convalidar esta leitura (das rosas brancas, enquanto metáfora
da pureza, à ressurreição e à intercessão) e que nos podem levar a falar de
uma revisitação mítica da Imaculada
Conceição, veja-se, por exemplo, os ecos da salve-rainha» naquele verso de Coração
do Dia (1958) onde se lê: ó
cheia de doçura.
O tempo
Essencialmente
há três linhas segundo a metáfora vitalista: a infância, a idade madura
(onde se instaura a coincidência estrutural que faz representar a idade como
verão) e por fim o declínio. Setembro, mês de passagem, o mesmo
que Outono, com o sentido de
melancolia. Inverno, tempo de ausências e um dos tempos de travessia.
São sobretudo as formas verbais (crescer, chegar, aproximar, atravessar) que
evidenciam o alcance metafórico da etapa. É o corpo o lugar que mais
sofre a travessia. Dezembro traz em si a
primavera (As Mãos e os Frutos,
1948), a presença de Dezembro neste verso mais do que afirmar ou
expandir propriedades que em si figurariam a metaforização de um universo de
desolação, desertificação ou esterilidade, reenvia para os sentidos de um Inverno
fecundante pretextando a Primavera. Diremos
prado bosque / primavera, / e tudo o que dissermos / é só para dizermos / que
fomos jovens (Mar de Setembro,
1961). Visão global da metáfora desejo, exaltação, claridade,
juventude. A Primavera
como tempo (metáfora) de transição anunciando outra estação que será
outra, mais acabada, metáfora do desejo enquanto plenitude: o Verão.
Portanto, são impacientes e amargos
os dias de Abril (Ostinato Rigore,
1964) e as luzes de Março aparecem adjectivadas de inquietas, loucas, despidas. Talvez, afinal, só o Verão (metáfora)
conduza à coroa do lume: Esse gosto a
sangue / que trazia a primavera, se primavera havia, / não conduz à coroa do
lume (Branco no Branco,
XVIII, 1984). O Verão (a luz, o sol, o calor, o incêndio, o
sul, a brancura, as águas, as dunas, a animalidade, a habitabilidade...)
aparece como lugar do desejo e da plenitude amorosa, metáfora feliz de
sedução, conectando-se intimamente com as referências ao corpo: lábios,
peito, flancos. Justamente o poema 26 de Mar
de Setembro, 1961, intitula-se Eros
e em Ostinato Rigore o
poema Anunciação da Alegria é
paradigmático ao nível de uma anunciação positiva:
«Devia
ser verão, devia ser jovem
ao
encontro do dia caminhava
como
quem entra na água.
Um
corpo nu brilhava nas areias
corpo
ou pedra?, pedra ou flor?
Verde
era a luz, e a espuma
do
vento rolava nas dunas.
Aproximei-me
desse corpo nu,
o
coração latino de alegria.
De
repente vi o mar subir o prumo,
Desatar
inteiro nos meus ombros.
Sem
muros era a terra, e tudo ardia».
Dentre as
histórias de Verão, declaradas histórias de desejo, releva-se a presença do
animal, do cavalo. Fábula é
uma história exemplar que mostra a contemplação da cena fundadora, olhar de
criança que descobre a realização plena do desejo: sobreleva a imagem do homem.
Um cavalo ofegante, olhos cerrados, o
suor escorrendo da raiz dos cabelos, espalhando-se pelas costas, pelos flancos,
pelas pernas, quase todas descobertas. Um cavalo cego mordendo o céu branco de
agosto, mas a terra chamou-o, e um relincho prolongado encheu o leito do
ribeiro, morreu no alto dos amieiros. Por fim a paz desceu ao mundo. Esta noite preciso de outro verão sobre a
boca crescendo nem que seja de rastos; O
verão é branco e sempre ficam sinais (Véspera
da Água, 1973), sinais do desejo». In Carlos Mendes Sousa, O Nascimento da Música, A Metáfora em Eugénio
de Andrade, Edições Almedina, Cultura e Literatura Portuguesa do século XX, Coimbra,
1992, ISBN 978-972-400-678-9.
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Almedina/JDACT