«(…) Recordo aquela época em que o mundo conhecido apenas existia para
nós quatro; os dias não passavam de espaços entre sonhos, espaços entre o
marcos movediços do tempo, das ocupações, da tagarelice... Um fluxo e refluxo
de assuntos insignificantes, uma vadiagem, sem finalidade, ao longo de coisas mortas,
Sem nos levar a parte nenhuma, sem nada nos oferecer uma existência que
esperava de nós o impossível: que existíssemos! Justine dizia que tínhamos sido
apanhados pela projecção de uma vontade demasiado poderosa e demasiado intencional,
para ser humana, a zona de atracção que Alexandria criava para aqueles que
tinha escolhido como seus símbolos. Seis horas. Nos arredores da gare, há uma
confusão de silhuetas brancas. Na Rua das Irmãs, as lojas enchem-se e
esvaziam-se como grandes pulmões. Os raios desmaiados do Sol trespassam as
longas curvas da esplanada, e os pombos, ébrios de luz, juntam-se nos minaretes
para banharem as asas nos derradeiros esplendores do poente. Nos balcões dos
cambistas, tilintam moedas. Os gradeamentos de ferro das janelas dos bancos
estão ainda demasiado quentes para uma pessoa lhes poder tocar. Ouve-se o rodar
das carruagens que levam os funcionários, com uma flor vermelha na botoeira, a
caminho dos cafés da beira- mar. É a pior hora de suportar, quando do meu
balcão eu a vejo caminhar na direcção da cidade, com as suas sandálias brancas,
ainda meio adormecida. A cidade sai da sua concha como uma velha tartaruga, e
deita uma olhadela cá para fora. Por um momento, abandona os pedaços arrancados
da sua carne, enquanto de uma ruela escondida junto do matadouro, dominando os
mugidos e balidos, sobem fragmentos nasalados de uma canção de amor síria;
quartos de tons penetrantes, como se produzidos por um nariz cheio de
orifícios. Depois, homens fatigados que levantam os toldos nas varandas e dão
um passo, piscando na luz pálida e quente,- flores lânguidas duma sesta
angustiosa, cabeças doloridas pelos húmidos sonhos, sonha dos nos leitos
torpes. Tomei-me num desses pobres amanuenses da consciência, um cidadão de
Alexandria. Ela passa debaixo da minha janela, sorrindo a alguma secreta
satisfação, abanando docemente as faces Com o pequenino leque vermelho. Um
sorriso que, provavelmente, não tornarei a ver, até porque, quando está acompanhada,
limita-se a rir, descobrindo os seus magníficos dentes brancos. Mas este sorriso
triste e furtivo tem uma qualidade que a ninguém ocorrerá atribuir-lhe,
malícia! Seria mais fácil concebê-la de uma natureza mais trágica, sem qualquer
espécie de humor vulgar. Mas a recordação obstinada desse sorriso faz-me
duvidar, presentemente, do acerto da minha observação.
Tinha-a encontrado frequentemente e conhecia-a bastante bem, de vista,
antes de nos relacionarmos: a nossa cidade não permite o anonimato, quando se
possui um rendimento anual superior a duzentas libras. Vejo-a sentada, sozinha,
à beira-mar, lendo um jornal e trincando uma maçã; ou no vestíbulo do Cecil Hotel,
entre as palmeiras poeirentas, com uma capa debruada a prata, que usava lançada
sobre as costas, como os camponeses, e com o longo indicador enfiado na barbela.
Nessim tinha parado à porta do salão de dança, cheio de luz e de música. Não a
tinha visto. Num nicho protegido pelas palmeiras, um par de velhos jogava o xadrez.
Justine parara para observá-los. Não sabia as regras do jogo, mas a aura de
concentração e de imobilidade que envolvia os jogadores fascinou-a. Permaneceu
ali, um longo momento, diante dos velhos, surdos ao mundo e ao universo cheio
de música, como indecisa e não sabendo em qual desses mundos entrar. Finalmente,
Nessim aproximou-se docemente para lhe tomar o braço, e os dois ficaram assim por
um instante, ela a olhar para os jogadores, ele a olhar para ela. Depois, ela
voltou-se com um suspiro de resignação, e dirigiu-se prudentemente para o mundo
do ruído e da luz.
E noutras circunstâncias igualmente menos honrosas para ela e para nós;
e, contudo, como é bem verdade que as mulheres mais másculas e engenhosas podem
ser maravilhosamente femininas! Ela não cessava de me falar nessas rainhas terríveis
que deixavam, ao passar o odor amoniacal dos seus amores incestuosos como uma
nuvem flutuando no inconsciente de Alexandria. As gatas gigantescas devoradoras
de homens, como Arsinoé, eram as suas verdadeiras irmãs. E, contudo, por detrás
das acções de Justine havia outra coisa, o produto de uma filosofia trágica
mais amadurecida, a ideia de um equilíbrio, mercê do qual a moral devia
suplantar a personalidade e as suas tendências perversas. Era a vítima sincera
das suas dúvidas corajosas. E, apesar de tudo, veio perfeitamente a ligação
entre o quadro de Justine, debruçando-se sobre o vaso imundo onde flutuava um
féto, e a pobre Sofia de Valentino, morrendo por um amor tão perfeito quanto
insensato. Georges Pombal, empregado subalterno do consulado, partilha comigo
um pequeno apartamento na Rua Nebi Daniel. O facto de ser possível que possua
uma coluna vertebral toma-o um fenómeno raro da sociedade diplomática. Para
ele, as chinesices do protocolo e as recepções, tal como num pesadelo
surrealista, possuem um encanto exótico. Vê a diplomacia através dos olhos de
Douanier Rousseau. Toma parte no jogo sem deixar que o que lhe resta de
personalidade sofra com isso. Creio que o segredo do seu sucesso reside na sua
preguiça, que toca o sobrenatural». In Lawrence Durrell, Justine (Quarteto de
Alexandria), Editora Ulisseia, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-568-496-2.
Cortesia de Ulisseia/JDACT