Mitos
«(…) A primeira questão que intriga os estudiosos sobre este assunto é:
onde ocorreu o naufrágio? As
fontes dizem que foi junto à costa de Samatra, mas o local diverge: nos baixios de Aru ou em Pasai?
Brás Albuquerque e João Barros mencionam o primeiro, o governador faz
referência explícita a este último. É que entre os dois sultanatos medeiam uns
300 km, pelo que a indefinição contribui em muito para adensar o mistério sobre
o naufrágio e, evidentemente, sobre o local exacto do tesouro. É, pois, o
tesouro que interessa. É interessante confrontar a imagem das riquezas
fabulosas com a documentação da época. Esse cotejo faz percorrer um arrepio na
espinha de qualquer entusiasta da caça ao tesouro. O desconhecimento da língua
portuguesa e de algumas fontes, a tradução errada e a sobrecitação, que
inevitavelmente leva ao exagero, fazem insuflar, de forma muito nítida, a
dimensão da carga da Flor de la Mar. O cronista mais
exuberante, como é seu hábito, é Gaspar Correia, a quem se deve a história dos leões
de ouro (em número de quatro) e a descrição de vários objectos preciosos, tudo avaliado,
segundo o mesmo, em um conto de ouro,
ou seja, um milhão de cruzados. Brás Albuquerque fala em castelos de madeira aparamentados, diversos objectos forrados de ouro e outras preciosidades,
mas a perda que Afonso Albuquerque mais teria lamentado foi a dos leões, que pretendia colocar no seu mausoléu
em Goa. Leões de ouro? Não,
de ferro fundido, e de valor sobretudo simbólico, como conta João Barros:
haviam sido oferecidos pelo imperador da China ao sultão de Malaca e
Albuquerque levara-os porque eram a mais
principal peça do seu triunfo da tomada daquela cidade. Fernão Lopes
Castanheda, por último, é lacónico e pouco diz. Sobre as alegadas toneladas de
ouro, nem uma palavra: como apareceram e constam em tudo o que é página da
Internet, é um mistério que rivaliza com o do próprio naufrágio.
Há um outro pequeno mistério adjacente: o que terá sucedido ao que
restou do infortúnio. O próprio Albuquerque, em carta ao monarca Manuel I,
afirma, e os Comentários do seu filho
atestam, que alguns objectos preciosos foram salvos, nomeadamente os presentes
do rei do Sião: uma espada, uma coroa de ouro e um anel de rubi, enviados para
Lisboa. Onde estarão? Na mesma
carta o governador lamenta a perda de algumas peças mas, acima de tudo, da
documentação respeitante à conquista de Malaca. Uma vez mais, nenhuma referência
a quantidades imensas de ouro. O fabuloso tesouro da Flor de la Mar não passa,
portanto, de um mito. Não deixa de ser um tesouro, cujo interesse
histórico não pode ser minimizado, mas o seu valor será provavelmente muito inferior
ao que é apregoado e difundido. Até aqui apenas falei da carga que naufragou em
1512; o que sobreviverá hoje, cinco
séculos depois, é evidentemente uma outra história, pois uma boa parte, se não
a quase totalidade, do tesouro afundado perdeu-se. Sou eu que o digo? Não, é Tomé Pires, que escreveu em
Malaca pouco depois do naufrágio, quem afirma perentoriamente que o rei de
Batak (na costa norte de Samatra) recolheu
o nau Flor de Ia Mar que com a tormenta
se perdeu avante da sua terra e dizem que recobrou muito quanto a água não
podia danar do qual dizem que é muito rico». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os
Portugueses Descobriram a Austrália? Existe um tesouro da Flor de la Mar?, Mitos
de Ontem e de Hoje, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.
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