«Um dos aspectos mais interessantes da época dos Descobrimentos, e que,
só por si, quase bastaria para derrubar certos mitos e teses, desde a Escola
de Sagres até aos alegados conhecimentos trazidos da Europa pelo infante
Pedro, foi o modo como Portugal, que sempre estivera desactualizado no que
dizia respeito à produção europeia sobre o conhecimento do mundo, introduziu
novas informações que tornaram obsoletas as noções clássicas e tradicionais da geografia
ocidental. Um problema de sincronia; quem quer que tenha alguma vez trabalhado
em edição de vídeo num computador perceberá do que falo: quando o processamento
da imagem se atrasa em relação ao som, o resultado torna-se incompreensível e
obriga a começar do início.
Algo de idêntico se passou ao longo do século XVI: duas dimensões distintas,
uma livresca e erudita, outra prática e ligada à navegação, que obrigou a
Europa a um esforço de actualização e sincronização. Durante algum tempo foi
ainda possível ajustar as duas fontes informativas, mas a certa altura já não
havia forma de alinhar os novos dados com os antigos. Alguns autores, desejosos
de mostrar erudição e conhecimento dos clássicos, tentaram-no, com resultados
desconcertantes; caso exemplar é o do luso-malaio Manuel Godinho Erédia, uma excelente
fonte para Malaca e para a história da região, mas cujos tratados de Geografia
constituem uma amálgama confusa a que alguém chamou um dia de pesadelo
cartográfico.
O caso da identificação da Taprobana,
por surgir mencionada logo no início d’Os
Lusíadas é o mais conhecido. O que
era? A ilha de Ceilão (actual Sri Lanka), decerto. Mas, segundo
alguns geógrafos italianos, era Samatra, por relutância em contradizer
Ptolomeu. Outros incluíam ainda informações provenientes do Livro de Marco Polo famoso
viajante veneziano que percorrera a Ásia e cujo relato se tornou célebre por
toda a Europa. Adiante-se, porém, que são escassos os vestígios de Ptolomeu e de
Marco Polo na cartografia portuguesa, cuja fonte era mais segura e fiável: o
manancial informativo proveniente das viagens de exploração.
Em boa parte dos casos, bastou corrigir nomes, acertar pormenores,
substituir nomenclaturas, algo que foi feito muito lentamente, à medida que o
prestígio da tradição ptolemaica decaía e as informações de Marco Polo eram
revistas. Porém, ao mesmo tempo que a Europa recebia com avidez as informações
portuguesas sobre o Oriente, algumas obras antigas conheciam um interesse
renovado; o caso mais curioso é o do livro de John Mandeville, uma das fontes
principais de Cristóvão Colombo, relembre-se, cheio de histórias fabulosas e
criaturas fantásticas, que continuou a ser reeditado e traduzido Europa fora,
quando já eram claras as suas falsidades e pouca fiabilidade. Nada que nos deva
surpreender, afinal: também nos nossos dias, As Cartas da Maya tem uma
audiência várias vezes superior ao Com Ciência.
Todavia, outras situações foram um pouco mais complexas. Que era feito do riquíssimo Cataio, que Marco Polo visitara e
que os Europeus nunca haviam localizado? E o Cipango, cujas descrições
de casas com telhados de ouro haviam inflamado a imaginação de Cristóvão
Colombo e acendido o seu projecto de
navegação atlântica? Não foram simplesmente riscados dos manuais. Pelo
contrário, subsistiram durante muito tempo. Cataio é a forma portuguesa do italiano Catai, corruptela do Khitan
ou Khitai (Qidan em pinyin
mandarim), um povo nómada da Mongólia que acabou por ser absorvido pela
China mongol. No Livro de Marco Polo,
designa, por extensão, a China que conheceu.
Esta dimensão continental e medieval da China interior era completamente
desconhecida dos Portugueses e nunca suscitou grande interesse por cá. O que os
Portugueses contactaram e conheciam era a China marítimaq e costeira, acessível
a partir de Malaca, do Guangdong e do Fujian. Atribui-se geralmente ao jesuíta
Mateo Ricci (1522-1610),
figura de proa da missão em Pequim, a equivalência entre o Cataio de Marco Polo e a China real, a que o próprio acedera
a partir de Macau». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? Quando
se descobriu que a China e o Japão eram o Cataio e o Cipango de Marco Polo?, Mitos
de Ontem e de Hoje, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.
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