domingo, 15 de fevereiro de 2015

Os Impetuosos. Luísa Leltrão. «Albertina sentiu-se com a alusão venenosa à virtude do marido, que ela bem sabia das suas escapadelas, mas uma coisa é saber, outra é dizer, Guilhermina era uma mulher magoada e bem razão tinha para isso…»

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«Ainda no meio da vida, já estou cansado como se fosse nos confins do seu entardecer. Tenho a cabeça branca e a alma devastada pela fúria de todos os ciclones». In António José de Almeida.

Memórias da tia Graça
«(…) Também António a procurara depois do almoço farto que Ana mandara servir com os habituais requintes. Guilhermina viera de Lisboa, de caminho para a Figueira, continuava a recusar-se ir para Coimbra, apesar da bela casa que António alugara por noventa e nove anos e mobilara com um conforto notável. Passarei contigo os meses de Verão na Figueira, como é costume, mas para Coimbra não vou e podes levar o Pedro, fica melhor contigo, eu não me entendo com o feitio dele. António vinha pedir a Albertina que convencesse a mulher a mudar de ideias, já viste o horror que é ficarmos separados, e o pobre do meu filho rejeitado pela mãe? Albertina, impressionada, acedera a conversar com a cunhada, embora mal a conheça!, porém, rejeitar um filho de dez anos era um sacrilégio. Vencendo a timidez e levando o seu bebé para se dar coragem, aproximara-se de Guilhermina que se mantinha um pouco afastada, não era pessoa querida na família. Ainda não pegaste na Maria Teresa. Já viste como é bonita? Guilhermina olhou-a com indiferença, desprezava todos estes burguesinhos, esta família a fingir que tudo corria bem, não a enganavam a ela que vinha de cepa fidalga e que nunca ninguém reconhecera como tal:
Para mim os bebés são todos iguais. Encarnados e feios. Mas ainda bem que estás contente com o teu. Albertina continuou heroicamente: Acho o Pedro tão crescido! Parece ter muito mais do que dez anos. E é um rapaz com um ar tão fino, tão ajuizado! A expressão de Guilhermina suavizou-se e os belos olhos cinzentos tomaram uma tonalidade quase azul: Não percas tempo, Albertina. Vejo que o António te encarregou de me convencer a ir para Coimbra. Mas eu não vou porque estou farta dele e dos seus disparates. E já agora, para te mostrar que as coisas não são o que vós pensais, vou-te contar o que ele fez, e isto é só uma amostra. Tu sabes que nós frequentávamos muito os meus primos, os barões do Limoal. Eles não têm filhos e afeiçoaram-se ao Pedro. Gostavam dele como de um filho, de modo que fizeram um testamento a deixar-lhe a sua enorme fortuna. Acontece que o teu querido António, em paga da amizade, se meteu com a minha prima Mariana, já a tinha debaixo de olho há muito tempo. E se ela era uma mulher honesta!
O Bemardo descobriu a marosca, fez uma cena das grandes, expulsou o António de casa e rasgou o testamento que tinha feito a favor do Pedro. Albertina ficou chocada, que horror! Que horror, é imperdoável! Atraiçoar a confiança de um amigo! E para ti, coitadinha, que humilhação, que desgosto! Meter-se com a tua prima! Guilhermina avaliou a cunhada, que corara de indignação: Para te ser franca, é-me indiferente que ele se meta com a minha prima ou com outra qualquer. Aliás ele mete-se com todas. Os homens são assim, o teu não há-de fugir à regra, se é que ainda não deste por isso. O problema que me enfurece é o testamento. O Pedro tinha o seu futuro assegurado, tal como eu. E por causa da estupidez desmiolada do meu esposo, lá se vai tudo por água abaixo.
Albertina sentiu-se com a alusão venenosa à virtude do marido, que ela bem sabia das suas escapadelas, mas uma coisa é saber, outra é dizer, Guilhermina era uma mulher magoada e bem razão tinha para isso, porém perdia-a ao abandonar o filho: O Pedro é que não tem culpa nenhuma! Porque te queres separar dele? Porque me quero separar do Pedro? Porque não tenho dinheiro! Julgas que sou uma desalmada, como todos querem fazer crer? O vosso querido António gastou tudo. Vivo modestamente e vou vendendo as jóias que ele me deu quando ainda tinha fortuna. Mas um dia as jóias acabam. E depois? Como é depois? O António tem que sustentar o filho. Além disso, ainda há outra coisa: o Pedro não fala, não ri, sempre com um ar de tristeza. Não tenho paciência para melancolias. É uma maçada educar crianças e andar sempre num sobressalto por causa delas. Não tenho feitio para isso. Para te falar com franqueza, estou farta desta família que sempre me tratou como uma intrusa. Olha, quanto menos estiver convosco, melhor. O António tem sorte que eu ainda aceite vê-lo, a ele e ao Pedro, nos meses de Verão, na Figueira. Albertina ficara impressionadíssima. Quando António, ansioso, lhe viera perguntar pelo resultado da conversa, ela descompô-lo: És impossível! Desonraste o teu lar e o lar dos teus primos. O que é que tu esperavas? Se fosse comigo, nunca mais te queria ver!
António fez um ar de menino arrependido: Não te zangues comigo, Albertina. Foi um azar. Mas a Mariana valia bem uma fortuna! Ela não achou graça nenhuma: Vou mesmo deixar de te falar! Não tens vergonha de teres prejudicado o futuro do teu filho? O cunhado abraçou-a, risonho: Ora, as fortunas vão e vêm, como o teu pai teve a amabilidade de dizer ao teu valoroso marido. Entretempos o Bernardo podia mudar o testamento por outra razão qualquer. E tornando-se sério de repente: Agora o Pedro separado da mãe, isso é que é mau! Ele tem uma sensibilidade de menina. Tu é que o compreendias! Não o queres receber na tua casa? Pelo menos nos primeiros tempos». In Maria Luísa Beltrão, Os Impetuosos, 1994, Editorial Presença, Lisboa, 1998, ISBN 972-23-1857-8.

Cortesia de EPresença/JDACT