Singularidades de
uma rapariga loura
«(…) O senhor
não repare, disse ele. À vontade. E para estabelecer intimidade tirei o casaco.
Não direi os motivos porque ele daí a pouco, já deitado, me disse a sua
história. Há um provérbio eslavo da Galícia que diz: O que não contas à tua mulher, o que não
contas ao teu amigo, conta-lo a um estranho, na estalagem. Mas ele teve raivas inesperadas e dominantes para a sua
larga e sentida confidência. Foi a respeito do meu amigo, do Peixoto, que fora
casar a Vila Real. Vi-o chorar, àquele velho de quase sessenta anos. Talvez a
história seja julgada trivial: a mim, que nessa noite estava nervoso e sensível,
pareceu-me terrível, mas conto-a apenas como um acidente singular da vida
amorosa... Começou pois por me dizer que o seu caso era simples e que se
chamava Macário.
Perguntei-lhe
então se era de uma família que eu conhecera, que tinha o apelido de Macário. E como ele me respondeu que era
primo desses, eu tive logo do seu carácter uma ideia simpática, porque os
Macários eram uma antiga família, quase uma dinastia de comerciantes, que
mantinham com uma severidade religiosa a sua velha tradição de honra e de
escrúpulo. Macário disse-me que nesse tempo, em 18…; ou que na sua juventude,
seu tio Francisco tinha, em Lisboa, um armazém de panos, e ele era um dos
caixeiros. Depois o tio compenetrara-se de certos instintos inteligentes e do
talento prático e aritmético de Macário, e deu-lhe a escrituração. Macário
tornou-se o seu guarda-livros. Disse-me
ele que sendo naturalmente linfático e mesmo tímido, a sua vida tinha nesse
tempo uma grande concentração. Um trabalho escrupuloso e fiel, algumas raras merendas
no campo, um apuro saliente de fato e de roupas brancas, era todo o interesse
da sua vida. A existência, nesse tempo, era caseira e apertada. Uma grande
simplicidade social aclarava os costumes: os espíritos eram mais ingénuos, os
sentimentos menos complicados. Jantar alegremente numa horta, debaixo das
parreiras, vendo correr a água das regas, chorar com os melodramas que rugiam
entre os bastidores do Salitre, iluminados a cera, eram contentamentos que
bastavam à burguesia cautelosa. Além disso, os tempos eram confusos e
revolucionários: e nada torna o homem recolhido, conchegado à lareira, simples
e facilmente feliz, como a guerra. E a paz que, dando os vagares da imaginação,
causa as impaciências do desejo. Macário, aos vinte e dois anos, ainda não
tinha, como lhe dizia uma velha tia, que fora querida do desembargador Curvo
Semedo, da Arcádia, sentido Vénus. Mas
por esse tempo veio morar para em frente do armazém dos Macários, para um
terceiro andar, uma mulher de quarenta anos, vestida de luto, uma pele branca e
baça, o busto bem feito e redondo e um aspeto desejável. Macário tinha a sua
carteira no primeiro andar por cima do armazém, ao pé de uma varanda, e dali
viu uma manhã aquela mulher com o cabelo preto solto e anelado, um chambre
branco e braços nus, chegar-se a uma pequena janela de peitoril, a sacudir um
vestido. Macário afirmou-se, e, sem mais intenção, dizia mentalmente aquela
mulher, aos vinte anos, devia ter sido uma pessoa cativante e cheia de domínio:
porque os seus cabelos violentos e ásperos, o sobrolho espesso, o lábio forte,
perfil aquilino e firme, revelam um temperamento activo e imaginações
apaixonadas. No entanto, continuou serenamente alinhando as suas cifras. Mas à
noite estava sentado fumando à janela do seu quarto, que abria sobre o pátio:
era em Julho e a atmosfera estava eléctrica e amorosa: a rabeca de um vizinho
gemia uma xácara mourisca, que então sensibilizava, e era de um melodrama; o
quarto estava numa penumbra doce e cheia de mistério. Macário, que estava em
chinelas, começou a lembrar-se daqueles cabelos negros e fortes e daqueles
braços que tinham a cor dos mármores pálidos: espreguiçou-se, rolou
morbidamente a cabeça pelas costas da cadeira de vime, como os gatos sensíveis
que se esfregam, e decidiu bocejando que a sua vida era monótona. E ao outro
dia, ainda impressionado, sentou-se à sua carteira com a janela toda aberta, e olhando
o prédio vizinho, onde viviam aqueles cabelos grandes, começou a aparar
vagarosamente a sua pena de rama. Mas ninguém se chegou à janela do peitoril,
com caixilhos verdes. Macário estava enfastiado. Pesado, e o trabalho foi
lento. Pareceu-lhe que havia na rua um sol alegre, e que nos campos as sombras
deviam ser mimosas e que se estaria bem vendo o palpitar das borboletas brancas
nas madressilvas! E quando fechou a carteira sentiu em frente correr-se a
vidraça; eram de certo os cabelos pretos. Mas apareceram uns cabelos louros.
Oh! E Macário veio logo salientemente para a varanda aparar um lápis. Era uma
rapariga de vinte anos, talvez, fina, fresca, loura como uma vinheta inglesa: a
brancura da pele tinha alguma coisa de transparência das velhas porcelanas, e
havia no seu perfil uma linha pura, como de uma medalha antiga e os velhos
poetas pitorescos ter-lhe-iam chamado, pomba, arminho, neve e ouro. Macário
disse consigo: É filha. A outra vestia de luto, mas esta, a loura tinha
um vestido de cassa com pintas azuis, um lenço de cambraia trespassado sobre o
peito, as mangas pendidas com rendas, e tudo aquilo era asseado, moço, fresco,
flexível e tenro. Macário, nesse tempo, era louro, com barba curta. O cabelo
era anelado e a sua figura devia ter aquele ar seco e nervoso que depois do
século XVIII e da revolução foi tão vulgar nas raças plebeias». In
Eça de Queirós, Contos, 1902, filme de Manoel Oliveira, 2009.
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