Pedro
V e dona Estefânia
«Não dissemos nada, demos as mãos, ele
beijou-me na testa, eu chorei, ele tinha lágrimas nos olhos, ficámos a
olhar-nos por muito tempo, sem nada dizer, mas compreendendo-nos» Poderia ser uma
entrada no diário dum poeta. Ou o trecho dum romancista descrevendo um momento
perfeito, mas ficcionado, em que duas criaturas, tão feitas uma para a outra
que dispensavam as palavras, se conheciam, por fim. Contudo, não foram ditas
por qualquer escritor de carreira. São razoavelmente contemporâneas desse
género de literatura, mas pertenciam à vida real. Foi a rainha dona Estefânia quem
as registou em carta, descrevendo à mãe o momento em que viu pela primeira vez
o noivo, Pedro V num cais de Lisboa, a 17 de Maio de 1858. Ela tinha acabado de chegar; ele
era como se tivesse.
Cada
um de 21 anos incompletos. Tinham casado por procuração no dia 29 do mês anterior,
na Igreja de Santa Edwiges, em Dresden. Ela, a princesa de Hohenzollern-Sigmaringen;
ele, rei de Portugal, representado na ocasião pelo cunhado, o príncipe
Leopoldo, irmão da noiva, um procedimento estranho ao entendimento ocidental no
século XXI, mas um ritual frequente ainda naqueles meados de Oitocentos. Agora,
ali, diante um do outro selavam o pacto em silêncio. No dia seguinte, casavam
de novo, para o país ver, em cerimónia oficial. Casariam as vezes que fossem
precisas, porque o termo poucas vezes fizera tanto sentido. Pedro
e dona Estefânia tinham acabado de chegar a casa.
Talvez
se recorde dele das notas de 1000 escudos, 1000$00. Foi, durante alguns anos, a
nota de maior valor facial em Portugal. Ao centro, um homem de cabelo e bigode finos,
impecavelmente aparados, rosto angular, olhar claro, fixo num ponto distante,
ombros direitos, pose esfíngica, uma figura cristalizada na juventude eterna de
príncipe perfeito. Era Pedro V um dos últimos reis de Portugal. E um dos mais
amados. Cresceu rodeado de uma aura de esperança. Era o rei que haveria de
reconciliar um país dilacerado pelos traumas da guerra civil que, anos antes,
opusera o avô, Pedro IV ao tio-avô, Miguel, e, portanto, duas visões opostas
do mundo: liberalismo e absolutismo. A sua mãe, dona Maria II, já sarara boa
parte das feridas, mas continuava a ser a rainha que resultara duma guerra,
para desonra dos vencidos. Pedro V era, pois, o começar de novo, uma figura que
inspirava no imaginário popular uma admiração natural, entre o primeiro Pedro
de Portugal, pela história de amor, e o desaparecido rei Sebastião.
Todas
as histórias que se contavam acerca do jovem alimentavam esse sentimento. Dele
se diz que, com apenas ano e meio, já se fazia entender em português, francês e
alemão. Tocava bem piano, era hábil na esgrima e no tiro e os críticos
apreciavam a firmeza do seu traço no desenho. Crescia numa educação humanista e
cheia de princípios, ou não ficasse a sua mãe, para a História, como a Educadora. Realizava trabalho social
junto da comunidade. Gostava de escrever e preparar discursos. No futuro,
haveria de colaborar na Revista
Contemporânea sob pseudónimo, como um vulgar opinador sobre matérias
internacionais. Não era, com efeito, um jovem comum. Queixava-se da futilidade
das raparigas que se acercavam da família real quando ia passar férias a
Sintra. Procurou, desde cedo, a companhia de Alexandre Herculano e isso dizia
quase tudo sobre o seu carácter e a forma como preparava as responsabilidades
que o aguardavam como filho mais velho da rainha. Herculano era, por esta
altura, a autoridade moral do reino. Mas não só. Era a autoridade moral que se
desapontara, profunda e irredutivelmente, com esse mesmo reino. Tinha sido um
homem invulgar, um soldado-escritor. De armas na mão e no campo de batalha,
lutou ao lado de Pedro IV na guerra, realizando na prática os ideais que
defendia por escrito. Vencido o combate, recebeu os naturais convites para
ocupar lugares políticos no regime que ajudara a implantar. E Herculano chegou
a ocupá-los, mas depressa se desiludiu. Preferiu trocar o Parlamento pelas
bibliotecas, o presente efectivo pela redacção da primeira grande História de Portugal e pelos
romances históricos. Depois, quando desistisse definitivamente dum país que,
feitas as contas, continuava a querer títulos de conde e barão, onde não sentia
pulsar a força da regeneração, mas a soturna decadência de vícios antigos,
retirar-se-ia para o campo». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de
Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
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