De
Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«Sobre o seu auto-retrato ela diz que, se tivesse
olhos azuis, cabelos loiros, estatura alta e corpo esculturalmente definido
como eu, ainda hoje, aos oitenta anos, seria senhora para muitos pretendentes.
Uma casa sem nome, mas cheia de rostos: comecemos pelo lado carrancudo que se
dá pelo nome de Vasquez e é o meu pai. As estórias contadas pela minha avó
explicam o humor dele, mesmo assim, gente nobre. Curva-se para falar connosco,
não só pela estatura alta, mas também porque sabe respeitar e medir as
palavras. Paredes meias com o primeiro está o insonso, é o da minha mãe, Isabel
é o nome dela. A minha avó nunca se cansa de dizer que fazem boa vizinhança.
Com ela nunca sei quando devo avançar ou recuar, só se expressa usando as cordas
vocais. Outros sentidos resumem-se a blocos de gelo, até mesmo a voz é
monocórdica. Não sei se um dia conseguirei fazer uma leitura acertada. Ah, a
minha avó é Eva, ganhou este nome quando foi conduzida, contra a sua vontade, à
pia baptismal, é um clássico, conta esses acontecimentos pelo menos uma vez,
por mês. É, portanto, uma cristã-nova. Ajuda a classificar todos os rostos, mas
não aceita que o dela seja classificado; mas pronto... Eu diria que tem cara de
avó, sempre com uma estória na manga, muitas vezes repetida, mas continuamos a
escutar pacientemente. Ai de nós se assim não for. Está sempre disponível, principalmente
no que à leitura de rostos diz respeito. Com seis anos, o do meu irmão Javier
está classificado como impávido. Ignora o carrancudo, a insonsa, as estórias da
avó e está sempre na dele; a excepção reside nos momentos de birra.
Eu
sou Raquel e tenho quinze anos. A minha avó diz sempre que somos cúmplices uma
da outra. Passa a vida a tentar convencer-me de que sou muita parecida com ela
quando era jovem, tudo para dizer que também era bem-humorada. E gira também,
claro! Era diz ainda que sou inteligente porque consegui reunir em mim o melhor
que os meus pais têm fisicamente, para depois complementá-lo com a simpatia e
boa disposição que, aí, já vem dela. A sério, ela é um número e o pessoal
diverte-se imenso com ela. Sobre o seu auto-retrato ela diz que, se tivesse
olhos azuis, cabelos loiros, estatura alta e corpo esculturalmente definido
como eu, ainda hoje, aos oitenta anos, seria mulher para muitos pretendentes.
Muito sinceramente, a avaliar pelas estórias que ela conta, acho que ela não teve
a juventude que desejava e hoje procura viver um pouco disso através de mim.
Até não desgosto, ela ganha um ar mais jovial. Caiada de branco e com o rodapé
azul vivo, a nossa casa destoa na paisagem circundante, geralmente verde,
sobretudo durante a Primavera. Aqui e ali uma ou outra casa; a mais próxima é a
do rabino Isaías, seus descendentes, claro! Aprendemos a tê-la como do antigo rabino
e assim era. Estranha forma de apelidar um converso. Todas as casas nas
redondezas eram, igualmente, sem rostos externos nem nomes, mas cada uma tem
uma história diferente e esconde o seu segredo.
A
história da nossa é contada pelas palavras da minha avó e remete-nos, numa
primeira fase, à sua infância, altura em que lhes apresentaram duas hipóteses:
a conversão ao cristianismo, ou a expulsão do reino de Castela. Como
verdadeiros seguidores da lei mosaica, optaram por seguir a via de expulsão
esperançados em alcançar o norte de África onde poderiam, livremente,
alimentar-se espiritualmente. Desfizeram-se à pressa de todos os bens que
possuíam, entre eles a casa da família, em troca de dois burros, alguns tecidos
e roupas brancas. Seguiram com tanas outras famílias, gentes conhecidas e
desconhecidas, até ao porto de embarque. Ela, na altura ainda miúda, e os seus
pais, meus bisavós portanto, tiveram imensas dificuldades na fronteira, tal
como todos os outros que se faziam acompanhar de crianças. Aos outros
impuseram-lhes uma vistoria humilhante, até às entranhas, e a quase todos
provocavam-lhes o vómito, porque descobriram que muitos engoliam ouro e prata,
única forma possível de conseguir transpor a fronteira com esses metais
preciosos, algo que era proibido. Bem, conforme dizia, os meus bisavós, por se
fazerem acompanhar de crianças, passaram poucas e boas. Coincidência das coincidências,
era a altura em que fervilhava o episódio de Toledo, onde se consta que mentes
fantasiosas e ávidas de motivos para acusar e trucidar judeus e conversos,
convém dizer que, para os anti-semitas, judeus e conversos são a mesma coisa,
orquestraram o sacrifício de uma criança cristã, alegando que o seu coração
fora cortado com o objectivo de desenvolver um feitiço destinado a destruir o
cristianismo e fazer valer o judaísmo.
Foram
obrigados a trabalho redobrado e, enquanto descalçavam as botas, a família
desintegrou-se ao apanharem embarcações diferentes. Os primeiros conseguiram
alcançar os seus destinos; quanto à minha avó e aos meus bisavós, foram
apanhados por uma tempestade de magnitude tal que se viram obrigados a
regressar. As autoridades eclesiásticas não perderam tempo: conduziram todo o
mundo à pia e obrigaram-nos a permanecer no reino. Entenderam que era um sinal divino
que não podia ser negligenciado. Desta forma, os meus antepassados perderam a
casa que era da família pelo que a permanência no reino obrigava a um novo
começo, apoiados em dois burros e nuns metros de tecido branco. Não tenho o
mesmo dom que tem a minha avó a contar as suas estórias. Longe disso! Diz o
povo que quem conta um conto acrescenta um ponto, agora imaginem a minha
tentativa de a imitar. Ela é exímia nisso e confere o seu cunho pessoal e cada
palavra, frase, parágrafo...» In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus
Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem
d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.
Cortesia
de Colibri/JDACT