sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Os Meninos Judeus Desterrados. Orlando Piedade. «Congratulou-se com a conversão e estendeu-lhes a sua mão camaleónica. Tempo de personalidade decorosa, de reputação inquestionável era tão pretérito como os seus inquestionáveis ensinamentos sobre os diversos versetos da ‘Tora’»

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De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) Reza a história que, quanto ao episódio de Toledo, as confissões foram arrancadas pelos inquisidores no clima de tortura e a reconstituição foi feita conforme a imaginação destes, independentemente de não se ter dado por falta de criança alguma, e muito menos se terem visto restos mortais no local que foi indicado ao inquisidor. Acontecimentos desses eram férteis pela Europa fora e não de exclusividade castelhana. Nessa matéria, a Igreja não falava a uma só voz. Havia vozes ao mais alto nível que se insurgiam contra tais práticas que visavam única e exclusivamente a fomentação de ódios. Já tinha acontecido, no ano mil duzentos e quarente e sete, com a contestação papal, onde este afirmava não haver fundo de verdade no tal ritual e considerava mesmo que tudo não passava de lendas. Era uma posição que, ocasionalmente, Roma vinha a público reiterar. O mistério prevaleceu até ao ano mil setecentos e cinquenta e nove, altura em que foi publicado o resultado de uma investigação exaustiva, pedida pelas comunidades judaicas europeias, ao cardeal Ganganelli, mais tarde papa Clemente XIV, onde se concluiu que tais acontecimentos nunce tiveram lugar em qualquer momento da História da Europa. Em termos imediatos, a acusação valeu aos visados a fogueira e o enforcamento, um pouco à semelhança daquilo que acontecia por todo o reino. Para além da consequência imediata, isto também constituía mais um motivo para atirar a população contra os judeus e conversos.
O amanhã é uma incógnita e nunca sabemos quando é que o destino troca as voltas aos nossos pés e nos traz de volta para calcar um vestígio antigo que a nossa lucidez procura esconder face à incapacidade de esquecer. Invariavelmente, a minha avó emocionava-se a cada vez que contava a forma como tinham perdido tudo. Sua tez franzida, os movimentos das suas mãos e sublinhar as suas palavras, produzidas num tom de voz visivelmente emocionado, mas nem por isso menos segura de si. O seu rosto reabria-se lentamente quando passava a falar da nova vida, apesar do trauma da conversão. Com o seu pé direito que assenta apenas sobre a ponta e lhe confere um andar característico, o rabino Isaías..., não percebo por que carga de água insistem na palavra rabino se o homem rasgou as bases da lei moisaica e adoptou as leis cristãs, se calhar pela sua rabugice, mas pronto..., pronto, era assim tratado e não vou estar agora a questionar. Na altura, um fervoroso cristão-novo, apareceu com a mão do gato, correu o ferrolho, abriu a cancela de recorte de ferro que dava acesso à sua casa e atravessou o caminho dos meus antepassados quando estes regressavam com as mãos vazias, tal como das outras vezes, desde que se converteu, assemelhando-se a um demónio pronto a estrangular as crianças, a minha avó diz ter sentido isso como criança que era, e seduzir o meu bisavô como uma autêntica rainha do mal.
Congratulou-se com a conversão e estendeu-lhes a sua mão camaleónica. Tempo de personalidade decorosa, de reputação inquestionável era tão pretérito como os seus inquestionáveis ensinamentos sobre os diversos versetos da Tora. Deixou-se levar pela correnteza da conversão que arrastou vala abaixo os seus próprios princípios e crença, ao navegar pelo cano cego, numa tentativa de purificar o próprio sangue e quiçá a alma. De pé atrás, fizeram mão morta à oferenda do antigo rabino e viram minimizada a penúria. Ao contrário dos meus antepassados, numa jogada de antecipação, mostrou que a sua fé era mutante. Isso permitiu que ele conservasse o seu padrão de vida no meio da procela e assim estava com os pés na algibeira. A sua mão estendida, triunfalmente, para os meus antepassados, constituía uma espécie de recompensa pelas várias tentativas falhadas para os conduzir pelo caminho da conversão. Para os meus antepassados a fé era inegociável, a menos que isso significasse manter a capacidade de continuar a respirar para depois se recomporem e retomarem o caminho que os sustentava espiritualmente». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.

Cortesia de Colibri/JDACT