«Talvez ninguém em nossa literatura tenha
personificado com tamanha força a figura do outsider,
do bizarro, do homem com uma sensibilidade fora do normal, como Augusto dos
Anjos (1884-1914). Incompreendido no seu tempo e quase miserável (como
herança à família deixou pouco mais do que os exemplares encalhados de seu
único livro), o poeta paraibano foi um dos raros escritores a transpor o abismo
entre as expressões literárias do final do século e a explosão do modernismo. A
sua obra permanece viva, não apenas nos manuais de literatura mas nos poemas
que se incorporaram à memória popular. Particularmente notável, neste livro, é
a evocação do Rio de Janeiro, onde o poeta atravessou anos cruciais de seu
desenvolvimento. Ali, naquela época de transição, quando os primeiros
automóveis disputavam as ruas com os tílburis puxados a cavalo, ainda se faziam
sentir os últimos suspiros de uma belle
époque sensual e boémia. Por esse cenário tumultuado, onde ousados projectos
de reurbanização da Capital conviviam com disputas políticas e literárias que
magnetizavam toda a população, desfilam personagens reais e fictícios,
surpreendidos nos momentos mais significativos. E é nesse contexto inusitado
que emerge, como contraponto ao drama de Augusto, a figura ímpar de Olavo
Bilac. Tratado com sensibilidade e precisão, ele cresce à medida que o livro
avança. Escrita com todo o fausto da nossa língua, esta obra revela-se, no
conjunto, uma das mais belas criações da autora e assinala um daqueles momentos
sublimes em que o romance histórico alcança o nível da mais inventiva ficção.
A plenitude da existência
Na madrugada da morte de Augusto dos Anjos
caminho pela rua, pensativo, quando avisto Olavo Bilac saindo de uma
confeitaria, de fraque e calça xadrez, com bigodes encerados de pontas para
cima e pincené de ouro se equilibrando nas abas do nariz. Embora esteja perto dos
cinquenta anos, o poeta do amor carnal ainda tem aquele olhar que tanto agrada
às burguesas e às prostitutas ou, para citar ele mesmo, às lavadeiras e às
condessas. Sinto pudor de dirigir-me a este homem erecto, famoso, rutilante,
recém-chegado de Paris, no seu tom de poeta supremo, com quem um simples
passeio na rua do Ouvidor equivale a uma consagração literária. Não quero ser
confundido com um oportunista, ou com um chaleirista. Mas sendo este um momento
de profunda tristeza, e a tristeza é uma espécie de anestésico, tomo coragem,
jogo fora o cigarro, paro em frente de Bilac e lhe digo um quase inaudível
bom-dia, porém percebendo logo o erro que cometi me corrijo: Boa noite.
Ele me examina com estranheza, tentando reconhecer-me.
Recua a cabeça, aperta os olhos e responde, ainda interrogativo, ao meu
cumprimento, tocando de leve na cartola. Já vai se afastando de mim quando o
interpelo novamente, dizendo algo a respeito de Théophile Gautier, a quem Bilac
muito admira. Ele pára e se volta, sorrindo. Falamos alguns minutos sobre o
escritor francês, desde tolices como minha referência a suas calças verde-água
e seu colete cereja, vaiados em plena rua e que se tornaram uma polémica
mundial, até coisas importantes, que Bilac introduz na conversa, como
comentários a respeito da arte pela arte, dos poetas românticos no cenáculo do
beco de Doyenné. Passamos a falar a respeito de Banville e logo, por uma
associação perfeita, sobre Baudelaire, de quem uma vez disseram que um odor
fétido de alcova porca emanava das suas poesias. Chegamos, portanto, onde eu
desejava.
Falar sobre Baudelaire tem o mesmo gosto que falar
sobre Augusto dos Anjos. Relato a Olavo Bilac a recente morte do poeta
paraibano. Ele me pede que repita o nome. Augusto
dos Anjos, repito. Bilac diz que lamenta muito mas, por um lapso, não o
conhece, tem andado mais em Paris que no Rio de Janeiro. Com o rosto
sinceramente compungido pede informações sobre Augusto, talvez pensando
na própria morte, seus últimos poemas não são mais voluptuosos como no Sarça
de Fogo, porém melancólicos e reflexivos; e, como cronista, não é mais tão
irónico e fescenino. Digo que Augusto foi um grande poeta
filosofante, cientificista, sim, mas com um abismo dentro de sua alma que leva o
leitor de seus poemas às mais profundas esferas da triste humanidade. Bilac
reflecte alguns instantes, segurando o queixo com o indicador e o polegar. Tuberculose?, pergunta, e digo
que não sei ainda a causa da morte de Augusto, mas que embora tenha
morrido aos trinta anos decerto nunca foi tísico, era todavia asmático; logo
saberei o motivo da sua morte, pois pretendo partir no primeiro trem para a
cidade mineira de Leopoldina, onde ele morreu, a fim de assistir aos funerais.
Bilac abana a cabeça negativamente, num lamento; pede que eu declame um verso
qualquer do poeta morto, em seguida se cala, à espera do poema.
Sei de cor todos os versos de Augusto, posso recitar
qualquer um deles de frente para trás e de trás para a frente. Mas nunca
conseguirei imitar os modos de Augusto quando declamava,
transfigurado, sem fazer quase nenhum gesto, usando apenas a voz, numa frieza e
paixão simultâneas, as sílabas escândidas com uma sonoridade metálica, os olhos
penetrantes, os lábios tensos. Tiro o chapéu, aperto-o contra o peito e, com
uma voz trêmula, anuncio o título do poema: Versos
íntimos. Raspo a garganta. E inicio a declamação: Vês?! Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão, esta pantera foi tua companheira inseparável! Acostuma-te
à lama que te espera! O Homem que, nesta terra miserável, mora entre feras,
sente inevitável necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu
cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, a mão que afaga é a mesma que
apedreja. Se a alguém causa ainda pena a tua chaga, apedreja essa mão vil que
te afaga, escarra nessa boca que te beija! Ao terminar estou suspenso,
frio, quase tonto e abro os olhos. O senhor Bilac fita-me, imóvel, os lábios
entreabertos, os olhos um pouco arregalados, ainda segurando o queixo. Pois
bem, ele diz. Eh... Tosse, cobrindo a boca com a mão. Depois cala-se,
visivelmente perturbado. Olha para os lados. Num impulso súbito deseja livrar-se
de mim. Pois se quem morreu é o poeta que escreveu esses versos, ele
diz, então não se perdeu grande coisa».
In
Ana Miranda, A Última Quimera, Companhia das Letras, 1995, ISBN 857-164-454-3.
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