II Fragmento
«(…) Por todo o lado luzes lojas anúncios, beba cerveja, visite as
vistas, vista as visitas, emagreça, coma, veja, Yvette é diferente de Irene mas
ambas preferem modess, compre gess kleenex reglex mex, ponha o tampão,
tampe o porão, afague o gre… para que cresça, aplique a pica na pombinha, afogue
o fogo enquanto é novo, esfole o fole enquanto é jovem, amole a mola enquanto
pode, use a caneta enquanto escreve, meta o grego na greta, molhe a marreta na
vala estreita, vergue a vara na valeta, vá ao veio e volte cedo, esprema o
mamão no matacão, um bom colchão dá te…, olhe em todas as direcções cuidado com
os aviões, ordens conselhos sugestões, publicidade ate à náusea, entrou num
bar, bebeu um bagaço que lhe soube a escarro, saiu pior que entrara, estômago e
boca numa brasa, pensamentos perplexos perturbavam-lhe o cérebro baralhado por
incongruentes factos gestos frases e um remorso vago, mas agora com Maria da Pureza
na alba do pinhal disse só: minha querida virgem desvirgada água alva.
III Fragmento
O meu nome é Daniel João. Pouco mais sei. Procuro saber. E, já que vim
aqui parar, demoro-me diante dalguns quadros, a maior parte invendável: os
burgueses ignoram se os autores virão a ser famosos e não querem arriscar. Esta
frase diz-ma uma rapariga que tem quadros na sala. Conversamos, conto-lhe que
sou exilado, que aproveito o meu exílio para estudar e pintar. Ela propõe: se
quiseres conhecer tipos do grupo vem aos Enfants
Terribles à noite apresento-te dois génios, Anders, que é sueco, e
Growinski, um russo, vou mostrar-te mais material guardado lá em baixo. Encostadas
à parede da cave há montes de telas com estilizadas esculturas pelo meio,
móveis algumas. Vejo pinturas dela, que assina Kerstin, longas letras
vermelhas. Uma pintura, cor cinzento-escura e leves laivos verdes, representa
um corpo sem idade nem sexo. Fico diante dele até que Kerstin vai para casa. Janto
pouco e depressa num self-service em Saint-Germain e para ocupar tempo entro na
discoteca Latin Musique, ao lado, onde não compro nada. Às dez dirijo-me à cave. Afinal abre só daí a uma
hora. Vou sentar-me numa esplanada cheia de desvairada fauna falando alto. Cheguei
ontem à tarde e resolvi ficar no primeiro quarto encontrado, onde dormi dez
horas. Quarto espaçoso, duas camas, armários, duas janelas, um pequeno lavatório
e a lareira decorativa apenas, pois ao lado estava um irradiador a gás, dos que
trabalham metendo moedas. Não me preocupava a incomodidade porque vinha exausto
da viagem e das noites em claro. Nem mesmo abri a mala. Sentia por todo o corpo
um calor febril que doía. Deitado de costas olhei casas sujas, fios, fumo de
chaminés, pombos escuros. Sem força para nada tirei da caixa de fósforos uma
lasca e pus-me lentamente a ruminá-la.
Um fio de suor escorria do sovaco e molhava-me o braço. Agarrei no
poema que tinha à cabeceira, li as primeiras linhas, cedo voltei atrás pois me
perdera, recomecei, reparei que sem dar por isso estava eu mesmo a fazer versos
e não lendo. E o livro? Apalpei
o peito, despertei, o livro não estava a meu lado nem debaixo da almofada nem
debaixo de mim, estava no chão, agarrei-o, reli, logo esqueci o que lera,
novamente dormira, tinha talvez fechado os olhos um segundo bastante para
apagar as linhas lidas. Pelo quarto vinha entrando uma penumbra espessa paz de
abandono, tudo em mim era inítido o ar rodava devagar ao redor das paredes
misturado com imagens da viagem. Companhia Internacional das Carruagens-Cama e
dos Grandes Expressos Europeus, ruído bom e surdo dos comboios na noite para
longe de tudo, de mim e do mundo. Hoje, contudo, aqui a uma mesa de esplanada
de café entre vertigem e verdade mas nunca solidão, sinto que uma visionária
visitação crepuscular me invade e o real se levanta das árvores, no rio avança
um barco e atrás dele há gritos de gaivotas que ora levantam voo ora pousam de
novo sobre as águas, é a hora em que amantes da tarde se separam para que os da
noite se encontrem com a noite a sós, hora em que cadelas parem filhos que
serão mortos de encontro a uma rocha, hora em que caixeiros-viajantes velhos se
deitam em leitos burocráticos de pensões baratas cujos lençóis cheiram a mofo e
pó e imploram um sono de que regressem vivos (santo e sossegado sono) e estalam
num riso sem razão nervoso até às lágrimas perante os indiferentes olhos dos
retratos dos mortos, é a hora em que políticos e homens de negócios decidem dos
destinos de quem lhes não deu poderes para decidir, hora em que muitos morrem
em guerrilhas seu sangue saindo pela minha vida e a vida que neles termina vem
aumentar a minha e estou com eles e levanto-me contra a injustiça sobre um só
deles exercida, hora em que as vozes do cosmos se recolhem e os sons se tornam
transparentes formas que o vento transforma, em que, porque se sentem nus, alguns
se vestem de escândalo e espectáculo e entram em cinemas de cueca-e-casaco e em
restaurantes de fato-macaco e de gravata e se descuidam à mesa e mandam pôr na
conta e falam faladram falam até à fadiga contra a vida que os faz assim falar
para ocultar o nada, falar daqueles graves casos em que a ciência fabiotética atenua
as partes melódicas da prognóstica reminiscência aliás bicanforada, perdão
minha senhora mas a moeda é falsa, não desistamos contudo, que a mesma hora é
em que nos campos os melros assobiam pelas sebes, gravam cigarras o seu canto
contra o poente persistente, luzes se acendem nas casas da encosta e no mar
nasce a lua nova, peixes-sapos mergulham na lama mais profunda para que a
metamorfose seja oculta, tudo se entrega aos braços nocturnos do terror que
cresce atrás de cada porta de cada comprido corredor que meninos percorrem de
candeia na mão a seguir ao jantar a caminho do quarto onde só dormem tarde escondidos
no lençol cheios do desejo urgente de abraçar um corpo e cada esquina aguarda
uma angústia ignorada, um querer suster o susto, é a hora em que nos hospitais
os furiosos são atados e cancerosos injectados para que lhes custe menos dor
durar, hora em que proletários vão para casa onde à falta de comida fazem
filhos a quem comida faltará e depois adormecem depressa como a querer morrer».
In
Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN
972-21-0746-1.
Cortesia de Caminho/JDACT