Prólogo
«A bala que havia perfurado o seu
pulmão permanecia alojada no tórax, mas o velho já não sentia a dor causada por
ela. Essa dor se transformara em foco, mesmo que a sua visão periférica
estivesse perdendo nitidez. Aquilo era esperado. Arno Holmstrand sabia que eles
viriam. Os eventos da semana anterior tinham deixado pouco espaço para dúvidas.
Estava pronto. Tivera de apressar os preparativos, mas agora estava tudo em
ordem. O palco estava montado e ele fizera o necessário. A única coisa que
faltava era completar a última tarefa e depois rezar para que os seus esforços
não fossem por água-abaixo. Desabou na poltrona de couro cru atrás da mesa. A
superfície de mogno diante dele parecia brilhar, reflectindo e espalhando a luz
fraca de um abajur pelo escritório
escuro. Uma beleza estranha num momento daqueles. Esticou os braços e pegou o
livro que estava aberto sobre o tampo de madeira e, por um momento, a dor que
lhe queimava o peito voltou. Se aquilo era necessário, servia como um último
lembrete: não havia saída a não ser terminar com tudo. Concentrou sua atenção,
fixou o olhar no volume e separou três páginas. Com toda a energia que pôde
reunir, arrancou-as do livro. Os passos que ouviu no corredor lhe fizeram
retomar o foco. Arno pegou um isqueiro dourado que ganhara quando fora padrinho
de casamento de um aluno anos atrás e o acendeu. Segurando as páginas
arrancadas sobre uma pequena lixeira ao lado do seu pé, aproximou a chama do papel.
No momento seguinte, as páginas já estavam a queimar. Soltando-as na lixeira,
observou-as enquanto se enrugavam e eram consumidas pelas chamas alaranjadas.
Recostou-se na poltrona. O último acto estava completo. Arno juntou as mãos,
entrelaçou os dedos e olhou na direcção da porta do escritório, que se abriu
bruscamente. O rosto do homem que o encarava parecia feito de aço, sem nenhuma
emoção. Alisando com a mão a jaqueta de couro preta que delineava os contornos
de um corpo atlético, examinou rapidamente a sala, olhou a pequena fogueira no
cesto de papéis e apontou uma arma na direcção do velho sentado à mesa. Arno
ergueu os olhos, fixando-os directamente nos do adversário. Eu estava esperando,
suas palavras eram calmas, dotadas de um tom tranquilizador de autoridade. Na
entrada do escritório, o homem com a arma não vacilou. Embora tivesse corrido
minutos antes, sua respiração já estava novamente em ritmo cadenciado. Arno
abandonou a familiaridade fingida da sua voz, que agora assumia um tom
estritamente profissional. Vocês me acharam. Um feito e tanto. Mas termina
aqui. O homem mais jovem lançou um olhar curioso para Arno e, por um momento,
diminuiu o passo. A autoconfiança do velho não era esperada, não naquele
momento. Aquilo era a sua derrota. No entanto, estava placidamente sentado,
numa calma que perturbava. O intruso respirou fundo. Depois, sem piscar, deu
dois tiros, um logo após o outro, directo no peito de Arno. A sala escureceu.
Arno Holmstrand ficou olhando o vulto do intruso ficar mais apagado, virar-se e
depois sair. A escuridão tomou conta de tudo. Depois, não havia mais
nada.
A torre da antiga igreja assomava
sobre a cidade, que lá em baixo começava, como de costume, a movimentar-se.
Algumas luzes pontilhavam as salas dos colleges
em torno da praça e furgões de entrega manobravam na High Street, abastecendo
lojas para o próximo dia de trabalho. A lua estava baixa no céu, os primeiros
raios de sol ainda ocultos pela noite. Precisamente às 5h30, o imenso ponteiro
de ferro do relógio atingiu a sua marca. Por trás do mostrador de metal, um
pequeno pino de madeira, deliberadamente inserido em meio à velha engrenagem,
partiu-se em dois. O cordão que estava atado ao pino soltou-se e o pacote que
ele mantinha suspenso no topo da torre começou sua planeada queda. Depois de
uma trajectória em queda livre ao longo dos cento e vinte e quatro degraus da
escada em espiral, ao pé daquela torre do século XIII, o pacote chocou-se
contra a espessa fundação de pedra. O detonador acoplado à extremidade externa
do pacote dobrou-se com o choque, produzindo a sua carga de ignição
precisamente direccionada. Antes que o detonador tivesse se incendiado
totalmente, o pacote de C4 rompeu-se, explodindo com uma fúria desenfreada. Numa
imensa bola de fogo, a antiga igreja ruiu». In A. M. Dean, A Biblioteca
Perdida, Conhecimento é poder…, e poder pode matar, tradução de Lenita Esteves,
Editora Prumo, 2012, ISBN 978-85-7927-298-1.
Cortesia
de EPrumo/JDACT