Cogito
«(…) Astor sentia sempre aquele tremor de febre a alojar-se-lhe nas
rótulas, ao ver a Avó e os seus afazeres. Não podia evitá-lo. E assim era desde
que se conhecia, já que a Avó repetia o seu secreto labor dia após dia, tendo
parado apenas no meio século do Banquete,
em que profanara todo o bom senso e se instalara na cabeceira de uma longa mesa
e se fartara e se tornara obesa comendo sempre melancias, seu eleito manjar. Um
após outro, foram-se sucedendo os peregrinos. E Astor divagou a vê-los
desfilar, crentes no desespero, na razão irracional de coisa alguma. Astor
meditou:
Com os olhos cheios do mar (que é uma mulher)
a navete inquieta do tempo
presa nos dentes,
um resquício, ainda, de vida
nas entranhas de um sopro.
A lágrima
e o amor no caos das descobertas?
Tanto utérculo nos olhos doutra manhã.
Astor mirou a Avó, o seu ar coruscante, a ignomínia de um coruchéu
desapiedado. A Avó, juiz da fome de muitas almas famintas, a esflorar a natureza
daquela gente corticenta, que tanto confiava. E Astor sentiu uma repulsa,
geeiro, a extensão de uma raiva que seria ódio num momento. E os sintomas de cólera-morbo,
de que era tantas vezes possuído, voltaram-lhe; o colírio de uma vez rara a
coliquar a visão, e desceu escuro sobre a sua boa vontade, um sarmento,
prostado e volúvel, a contrariar-lhe a dor, a consolidar-lhe a tempérie, a defini-lo.
Temporalizar a mágoa? E o que resta do intrépido desígnio de
pulsar a vida? Vale a pena lutar pela novidade, pensou Astor. Sentiu um
formigueiro nos dedos e uma força débil que crescia. Juntar as desinências em
desgarre, afrontar a indolência e o embuste daquela paisagem lúgubre... Mais
não queria em força, desejou Astor. E ficaram-lhe os intentos a pairar, um
balão lento fixado, uma vontade de desgornir os murmúrios para desfrute de um
tempo novo e sem cadeias. A Avó era um queixume corrosivo e o mundo inteiro sofreria
a sua iniquidade.
No dia em que Astor fizera quinze anos, a Avó, já cega então, pegara
nele ao colo. Dera-lhe colheradas de um xarope estranho e contara-lhe, pela
primeira vez, a historia do Príncipe Perdido. Astor ouvira-a, e
invadira-se de uma febre, dormente, enquanto a escutava. As órbitas amarelas da
cega irradiavam uma luz de vela solitária. Virando a cabeça, Astor distinguiu
na parede da cozinha, distinta, a feição rosada e o ar sublime do Príncipe.
As armas, os modos,
necessitava aniquilar a razão
dos novos,
e era novo
na castração das faces.
Irradiante sim,
como se pedisse o tributo
à sua beleza frígida,
o terror de uma virgindade anil
pousada no borrão aceso
de uma fogueira perversa.
E o galgo, os olhos de cão,
a arreata de prata fustigante
e o fato, armadura de polimento recente
e o chicote nas mãos,
o chicote,
o chicote...
O Príncipe meneou os caracóis loiros e, de cabeça erguida, falou.
Astor, bom Astor, não cuides que morri, só os néscios e os rouxinóis assim o
pensam, disse sorridente. E a Avó sacudiu o corpo em estertores de epilepsia e
os olhos redobraram a força-lume de vela solitária e as mãos como garras
destroçaram o frasco de xarope. Astor saltou-lhe do colo, correu desenfreado e
o corredor da casa fazia-se infinito, insensatez, debaixo dos seus pés e ouvia
todos os relógios em badaladas imensas e tropeçou repetidas vezes até cair num
charco de suor e soro e sangue derramado das veias que deixara em rasgos
abertos por cair no chão. Estivera cinco dias, cinco noites sem falar. Naquele
estado, só ficara quando soubera da guerra grande que a Avó fizera na lonjura das
matas coloridas. A guerra suja que nunca esqueceria, como nunca esqueceria, por
igual nojo, a beleza mórbida do Príncipe Perdido, ilusão amarga
sustentada pela Avó, recriada nos seus fiéis, nem se esqueceria dos olhos ocos
e em labareda miúda da sua Avó cega». In Alexandre Honrado, O Príncipe Perdido,
colecção O Chão da Palavra, Vega, Lisboa, 1986, ISBN 978-972-699-155-7.
Cortesia de Vega/JDACT