sexta-feira, 6 de março de 2015

O Príncipe Perdido. Alexandre Honrado. «Temporalizar a mágoa? E o que resta do intrépido desígnio de pulsar a vida? Vale a pena lutar pela novidade, pensou Astor. Sentiu um formigueiro nos dedos e uma força débil que crescia…»

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Cogito
«(…) Astor sentia sempre aquele tremor de febre a alojar-se-lhe nas rótulas, ao ver a Avó e os seus afazeres. Não podia evitá-lo. E assim era desde que se conhecia, já que a Avó repetia o seu secreto labor dia após dia, tendo parado apenas no meio século do Banquete, em que profanara todo o bom senso e se instalara na cabeceira de uma longa mesa e se fartara e se tornara obesa comendo sempre melancias, seu eleito manjar. Um após outro, foram-se sucedendo os peregrinos. E Astor divagou a vê-los desfilar, crentes no desespero, na razão irracional de coisa alguma. Astor meditou:

Com os olhos cheios do mar (que é uma mulher)
a navete inquieta do tempo
presa nos dentes,
um resquício, ainda, de vida
nas entranhas de um sopro.
A lágrima
e o amor no caos das descobertas?
Tanto utérculo nos olhos doutra manhã.

Astor mirou a Avó, o seu ar coruscante, a ignomínia de um coruchéu desapiedado. A Avó, juiz da fome de muitas almas famintas, a esflorar a natureza daquela gente corticenta, que tanto confiava. E Astor sentiu uma repulsa, geeiro, a extensão de uma raiva que seria ódio num momento. E os sintomas de cólera-morbo, de que era tantas vezes possuído, voltaram-lhe; o colírio de uma vez rara a coliquar a visão, e desceu escuro sobre a sua boa vontade, um sarmento, prostado e volúvel, a contrariar-lhe a dor, a consolidar-lhe a tempérie, a defini-lo. Temporalizar a mágoa? E o que resta do intrépido desígnio de pulsar a vida? Vale a pena lutar pela novidade, pensou Astor. Sentiu um formigueiro nos dedos e uma força débil que crescia. Juntar as desinências em desgarre, afrontar a indolência e o embuste daquela paisagem lúgubre... Mais não queria em força, desejou Astor. E ficaram-lhe os intentos a pairar, um balão lento fixado, uma vontade de desgornir os murmúrios para desfrute de um tempo novo e sem cadeias. A Avó era um queixume corrosivo e o mundo inteiro sofreria a sua iniquidade.
No dia em que Astor fizera quinze anos, a Avó, já cega então, pegara nele ao colo. Dera-lhe colheradas de um xarope estranho e contara-lhe, pela primeira vez, a historia do Príncipe Perdido. Astor ouvira-a, e invadira-se de uma febre, dormente, enquanto a escutava. As órbitas amarelas da cega irradiavam uma luz de vela solitária. Virando a cabeça, Astor distinguiu na parede da cozinha, distinta, a feição rosada e o ar sublime do Príncipe.

As armas, os modos,
necessitava aniquilar a razão
dos novos,
e era novo
na castração das faces.
Irradiante sim,
como se pedisse o tributo
à sua beleza frígida,
o terror de uma virgindade anil
pousada no borrão aceso
de uma fogueira perversa.
E o galgo, os olhos de cão,
a arreata de prata fustigante
e o fato, armadura de polimento recente
e o chicote nas mãos,
o chicote,
o chicote...

O Príncipe meneou os caracóis loiros e, de cabeça erguida, falou. Astor, bom Astor, não cuides que morri, só os néscios e os rouxinóis assim o pensam, disse sorridente. E a Avó sacudiu o corpo em estertores de epilepsia e os olhos redobraram a força-lume de vela solitária e as mãos como garras destroçaram o frasco de xarope. Astor saltou-lhe do colo, correu desenfreado e o corredor da casa fazia-se infinito, insensatez, debaixo dos seus pés e ouvia todos os relógios em badaladas imensas e tropeçou repetidas vezes até cair num charco de suor e soro e sangue derramado das veias que deixara em rasgos abertos por cair no chão. Estivera cinco dias, cinco noites sem falar. Naquele estado, só ficara quando soubera da guerra grande que a Avó fizera na lonjura das matas coloridas. A guerra suja que nunca esqueceria, como nunca esqueceria, por igual nojo, a beleza mórbida do Príncipe Perdido, ilusão amarga sustentada pela Avó, recriada nos seus fiéis, nem se esqueceria dos olhos ocos e em labareda miúda da sua Avó cega». In Alexandre Honrado, O Príncipe Perdido, colecção O Chão da Palavra, Vega, Lisboa, 1986, ISBN 978-972-699-155-7.

Cortesia de Vega/JDACT