Ciência e Religião. Natureza
e Símbolo
«(…) Quais poderão ser as
marcas dessa imperfeição que configuram a existência de uma dependência?
Elas são percebidas pelo espírito no Universo: as coisas naturais estão
sujeitas ao movimento; encontram-se subordinadas umas perante as outras, de
acordo com uma determinada ordem, da qual, por si próprias, não podem dar conta;
os seres naturais são limitados no espaço e no tempo. Ora, a estrutura desta
prova a posteriori, tal como a
veremos adoptada pelos nossos textos das Luzes, tem como pressuposto essencial
que o movimento do pensamento é possuído de uma certeza intuitiva, segundo a
qual tudo o que é tem a sua razão de ser, sendo que tudo o que não tem a sua
razão de ser em si próprio, tem-na, necessariamente, em um outro. Um tal
pressuposto implica a aceitação de que a natureza do pensamento é tal que, no
seu movimento discursivo, apenas pode parar quando houver encontrado uma causa
que nada exija para lá de si própria, tendo em si, a sua própria razão de ser. É a partir deste
pressuposto que veremos a afirmação de um princípio de causalidade, prolongando-se
na afrmação de um finalismo, que abrange todos os seres causados. De acordo com
o princípio da causalidade, postula-se que todos os seres contingentes têm uma
causa. De acordo com a ideia de finalidade, afirma-se que a causa que
produziu todos os seres contingentes agiu tendo em vista um fim determinado,
sendo que tal fim, atendendo à natureza, da causa eficiente e criadora, se
apresenta, necessariamente, como um bem.
Nestes termos, causalidade e finalidade reclamam para si o estatuto de
princípios que se apresentam com a máxima evidência para o espírito. São princípios
que emergem do exercício da razão natural, aplicada ao universo sensível. Mas,
para que tal suceda, é necessária a aceitação de uma ideia a que aqui já nos
referimos: a da contingência dos seres
criados. De facto, a noção de contingência, que se encontra subjacente
aos nossos textos setecentistas, pressupõe que um ser contingente é aquele que pode
não ser, isto é, cuja essência não é determinada por si propria a ser
ou a não ser, pelo que se exige que deva a sua existência a um princípio que o
transcende, o qual se assume, assim, como causa eficiente. Logo, um ser
contingente, um ser que pode não ser, não existe por si próprio, devendo a outra
causa a sua essência e a sua existência.
O problema da contingência, neste plano, situa-se assim sobre o plano
radical da existência, como resultado da identificação clara e indubitável
entre Ser e Deus, ou seja, como consequência da afirmação da identidade entre
essência e existência em Deus. Como escreveu Etienne Gilson, .lendo na Bíblia a
identidade da essência e da existência em Deus, os filósofos cristãos não
podiam deixar de considerar que apenas a respeito de Deus se poderia falar de
uma identidade entre a essência e a existência. A partir deste momento, diz ainda
Gilson, a contingência, tal como a entendera Aristóteles, assente numa concepção
de movimento que se apresenta como reveladora de uma certa falta de actualidade, apontando, portanto, para a
contingência dos modos de ser, ou tal
como a entendera Platão, como contingência da substancialidade dos seres, de
acordo com os seus diferentes graus de participação,
no inteligível da forma ou da ideia, surge alterada e aprofundada por um plano
de maior radicalidade, pois se trata agora da contingência radical da própria
existência. Nestes termos, a contingência, não se limia a afirmar que um ser
poderia não ser tal qual é, mas que, para além disso, poderia não existir. Neste
contexto, o universo adquire um estatuto metafísico diferente, exactamente
aquele que emerge da afirmação de uma ideia estranha ao Demiurgo do Timeu ou ao Primeiro Motor de
Aristóteles: a ideia de Criação.
É a ideia de Criação que permite aprofundar a noção de contingência,
abarcando não apenas os modos de ser,
mas a própria existência dos seres. Ora, esta transformação arrasta, como
consequência imediata, uma modificação nas chamadas provas cosmológicas da
existência de Deus, pois a natureza já não nos fala apenas da glória de Deus
através do espectáculo da sua harmonia,
mas, sobretudo, através do facto de existir. Como se pode desde já concluir, é
o princípio da causalidade, juntamente com as consequências que dele se afirmam
(a contingência e a finalidade, pois que, em Deus, causa e fim são uma e a
mesma coisa), que confere o dinamismo e a força principal ao conjunto das provas cosmológicas, da existência de
Deus, nomeadamente àquela que se nos afigura de maior importância no âmbito da
física teológica: a prova pela ordem, pela harmonia e pela finalidade do Universo.
Mas, em razão do que dissemos, o conjunto destas provas apenas ganha um sentido
mais profundo se constantemente remetido à ideia fundamental que o sustenta: a
Criação. Na realidade, provar a existência de Deus per ea quae facta sunt, é provar, antes de mais, a sua existência
como criador do Universo, ou que a causa eficiente, que se trata de provar,
através da natureza, é também a causa criadora da própria natureza, em termos
de que a relação de efeito a causa, que une a natureza a Deus, se coloca no
plano radical da existência dos seres contingentes». In Pedro Calafate, A Ideia de
Natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos Gerais, Série
Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994, ISBN
972-27-0700-0.
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