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Sobre a data em que São Teotónio morreu
Ao longo da sua vida, S.
Teotónio desempenhou o papel de colaborador espiritual de Afonso Henriques. Diz a
sua biografia que o rei, quando soube da sua morte, teria dito: antes estará
a sua alma no céu do que o corpo no sepulcro. A data da morte de S.
Teotónio em 18 de Fevereiro de 1162
merece actualmente o consenso generalizado de todos os historiadores. Poderá
assim parecer ocioso determo-nos na análise dos elementos de prova. Penso,
contudo, que merece a pena fazer esse percurso, pois, embora o último documento
de que dispomos do prior Teotónio seja de 1162,
isso, só por si, não nos permite concluir com segurança que não tenha vivido
para além dessa data. A informação associada à data em que S. Teotónio morreu,
que consta do último parágrafo do texto da Vita Theotonii, vai
ser o nosso ponto de partida para a construção de uma hipótese que explique a
divergência das fontes acerca do ano de nascimento do rei.
O lapsus calami do dia da semana
O facto de a pontuação de todo o parágrafo estar reforçada a
vermelho na primeira letra de cada frase, situação que é excepcional no texto,
permite-nos intuir o cuidado envolvido na compilação dos elementos cronológicos
aí expressos. Apesar disso, encontramos um problema associado ao dia da morte
de S. Teotónio. Para a sua análise detalhada, começamos por tomar a primeira
frase dessa cronologia que Aires Nascimento verteu para português do seguinte
modo: Adormeceu na consciência de ter vivido bem e dos prémios dos
méritos, no dia décimo segundo antes das calendas de Março, a um sábado,
à primeira hora do dia, aquela em que Cristo ressuscitou. Conforme se
vê, onde no texto original estava feria VI (sexta-feira), Aires
Nascimento considerou dever tratar-se de feria VI[I] (sábado).
A correcção proposta resulta de o dia da semana indicado no texto do manuscrito
não corresponder ao dia do mês desse ano. Com efeito, segundo as tabelas de
Cappelli, diz A. Nascimento, aquele dia recaiu num sábado. Trata-se, porém de
um equívoco: as tabelas mostram que esse dia foi um domingo. O dia XII das
kalendas de Março, 18 de Fevereiro, seria, de facto, um sábado se o
ano fosse bissexto. Todavia 1162 foi
um ano comum. A. Nascimento deve ter confundido as colunas da tabela,
tomando a dos anos bissextos pela dos anos comuns. Fê-lo na convicção de que
resolveria assim uma contradição aparente do texto, pois que no fólio 19 assinala-se
que Teotónio é surpreendido pela morte: Cum nos septima sabbatti post
matutinos seniorum copiosius benediceret, repente super humerum caput paululum
inclinauit.
A septima sabbati viria confirmar a datação da morte
num sábado (feria VII), como sétimo dia, o dia do descanso
divino, e acha menos plausível a manutenção da designação dos dias da semana
por um esquema directamente numérico. Com efeito, parece que, ao considerarmos
que 18 de Fevereiro de 1162
foi um domingo, teríamos de assinalar uma contradição com a expressão septima
sabbati. Penso, todavia, que esta expressão se limita a associar a morte de
Teotónio ao dia do descanso divino do calendário judaico. Entendo assim que não
se pretendeu nomear o dia da semana, pois nesse caso, certamente seria usado o
nome do calendário do papa Silvestre sabbatum em vez do hebraico septima
sabbati. Como seria de esperar, no que se refere à forma de indicar uma
sexta-feira no texto, verificamos haver uniformidade de critério.
Existe ainda um outro aspecto na mesma citação que merece a
nossa atenção. Aires Nascimento substituiu na frase acima citada seniorum
por mortuorum pensando tratar-se de um momento das matinas. Sobre este
aspecto específico, a tradução quatrocentista da Vida de S. Teotónio com o
título de Vida do bem aventurado Padre S. Teotónio primeiro prior que foi
no mosteiro de Santa Cruz apresenta um alternativa que merece a pena
referir: hũa sesta feira, depois de matinas, inclinou depressa hũ pouco a
cabeça sobre hũ ombro, de hũ dos velhos, e mais copiosamente lancaua a bençaõ Tomando
a tradução de seniorum por velhos
e a nossa interpretação sobre a natureza figurativa de septima sabbati
como dia do descanso divino, estamos em condições de propor uma nova
tradução para a frase como um todo: Como no dia do descanso divino, e
depois de nos ter dado a bênção mais profusamente, de repente, inclinou a sua
cabeça um tanto sobre o ombro de um ancião. A análise do problema do
dia da semana fica assim restringida apenas ao último parágrafo da Vita
Theotonii. É oportuno referir que existe um número considerável de
desvios de um grau na ordem da féria em documentos medievais, podendo ter
origem no autor ou no copista. No caso em análise, 18 de Fevereiro de 1162, o dia da semana assinalado (sexta-feira),
estaria dois graus afastado do dia em que, de facto, ocorreu (um domingo).
Seria mais remota a possibilidade de o autor anónimo ter errado em um grau, por
defeito, fixando um sábado onde era um domingo, e um copista, cumulativamente,
ler no original feria VII e escrever feria VI». In
Abel Estefânio, A Data de Nascimento de Afonso I, Medievalista, nº 8, 2010, Instituto de Estudos Medievais, direcção
de José Mattoso, ISSN 1646-740X.
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