«Ele gostava de política radical e tinha um fraco por
chocolate. Cinco anos antes, a honorável miss Lacy-Grey quase desmaiara
quando num baile, perante testemunhas, ele a convidara para uma contradança, um
exemplo do tipo de incidentes que os amigos achavam intensamente divertidos e
gostavam de recordar ad nauseam enquanto bebiam. Circulava o rumor que uma
proposta de casamento teria deixado a pobre rapariga maculada para o resto da
vida, e um convite de um género inferior tê-la-ia matado de imediato. Christian
encontrava-se naquele momento com a cabeça pousada na curva suave das costas
dela, os dedos a deslizarem indolentes entre a meia e a pele macia mesmo acima
da liga azul e amarela, e pensou que os amigos tinham sido um pouco exagerados
nas suas previsões. Parecia viva e bem viva. Os tornozelos estavam belamente
cruzados, e sacudiam-se com suavidade para cima e para baixo no ar acima dele. Christian
pousou a palma da mão em cima da nádega dela, beijou o sinal no fundo das
costas e endireitou-se, apoiado no cotovelo. Quando é que Sutherland regressa a
casa? Em princípio, só daqui a duas semanas. A ex-miss Lacy-Grey rolou
para o lado, sorriu, expôs os seios que se tinham tornado mais pesados, e a
cintura ligeiramente mais gorda e inchada. Eram amantes há cerca de três meses.
Christian passou os olhos pelas alterações subtis ergueu as pestanas, sem
falar. Quem me dera que nunca mais voltasse, disse ela, e entrelaçou mãos acima
da cabeça. Tem sido maravilhoso. Melhor do que chocolate, disse ele. A sério? Ele
olhou em volta, ao lembrar-se. A cafeteira alta esperava-o, a chaleira a fervilhar
suavemente no fogão. Desculpa. Levantou-se da cama. Seu homem odioso. Christian
fez uma vénia rasgada e piscou-lhe o olho. Pegou na chaleira, deitou água
quente sobre o leite frio, exactamente metade de cada, raspou algumas lascas de
chocolate para dentro da cafeteira e agarrou manípulo do moinho. Sentia o
tapete frio e acetinado sob os pés nus. Rodou o alto manípulo do moinho
vigorosamente, aquilo deveria ter sido feito sobre o lume, não na cafeteira,
mas as condições a altas horas a noite nos aposentos de outro homem nem sempre
eram as ideais, serviu-se de uma chávena da mistura espumosa. Que consigas
beber isso sem um único grão de açúcar é um desafio para a imaginação, observou
ela. O açúcar és tu que lho dás, doçura, respondeu ele de imediato bebeu outra
golada, nu junto da mesa. Como poderia ser de outro modo? Ela tentou fazer uma
expressão aborrecida, mas acabou por lhe sorrir. Voltou a esticar os braços com
um suspiro e, provocadora, arqueou o corpo ao mesmo tempo que fazia deslizar os
pés enfiados nas meias, uma e outra vez, sobre os lençóis. A sério! Gostaria
que Sutherland nunca mais regressasse a casa. Era melhor que desejasses que ele
voltasse depressa para que se deitasse contigo, minha menina, e quanto mais
depressa melhor. Ela levantou o olhar pousado nas mãos e de seguida voltou a
baixá-las. Franziu de novo os lábios com aquela expressão tão atraente. Ele não
se vai importar. Tenho a certeza que não, replicou Christian num tom cínico.
Ela pousou a palma da mão no ventre inchado e observou-o pelo canto do olho. Christian
pousou a chávena e inclinou-se sobre ela. Beijou-lhe o peito, enquanto lhe
passava os dedos por entre o cabelo e lhe beijava o pescoço. Valeu a pena?,
murmurou-lhe ao ouvido. Ela levantou os braços até lhe rodear os ombros e
apertou-o com força. A suavidade daquela pele voltou a despertar o desejo em
Christian, e, enquanto a jovem se agarrava a ele como se se estivesse a afogar,
aproveitou o momento para lhe voltar a manchar a honra. Ela pareceu desfrutar o
momento. Deus era testemunha disso. Na base da escadaria, cintilava a chama de
uma única vela, que iluminava o braço esquerdo e as roupagens de uma reprodução
em mármore de uma estátua de Ceres cujo olhar, num excesso de sentimentalismo,
repousava num feixe de trigo que tinha aos pés. Christian desceu as escadas
discretamente, mas não às escondidas, já que uma semana antes chegara a um
acordo com o mordomo e passara a deixar junto do candelabro um impecável
montículo formado por três moedas de ouro de cada vez que saía da casa. Estava
à procura das moedas no bolso quando ouviu o som de passos mais em baixo.
Deteve-se no patamar, a mão apoiada no corrimão. Edith?, perguntou do fundo das
escadas uma voz masculina, que ecoou ligeiramente pelo vestíbulo. Que o
diabo me carregue. Christian deteve-se, completamente imóvel. Na base da
escada, surgiu Leslie Sutherland, a despir o casaco. Eydie?, voltou a chamar, e
alisou as patilhas ruivas enquanto olhava para cima. No vestíbulo ouvia-se o
tiquetaque de um relógio. Christian nunca se apercebera da sua presença, mas
naquele instante de silêncio soou como um augúrio cristalino e irrevogável. Um...
dois... três... quatro... Ao chegar a quatro, aconteceu. O meio sorriso
desapareceu do rosto de Sutherland. Os lábios entreabriram-se-lhe. Christian
não esperou que pronunciassem qualquer palavra e não o fizeram. Apenas silêncio
e o rosto de Sutherland a tornar-se cada vez mais pálido, até a boca se fechar
e a cor lhe invadir todo o rosto, com excepção dos vincos profundos junto ao
nariz e em volta dos lábios. Seis... sete... oito... Christian pensou em
diversas coisas para dizer, todas elas falsas e dirigidas a si mesmo, excepto a
frase clássica: Voltaste mais cedo, não voltaste? Conteve-se. Sutherland
ainda parecia presa de um profundo choque. Uma dormência incómoda na mão
direita fez com que Christian se apercebesse da força com que agarrava o
corrimão através da luva. Soltou-o, mas a sensação de formigueiro aumentou e
teve a sensação de que era atingido por uma vertigem, como se a escada debaixo
dele ondulasse sem se mover. Abriu e fechou a mão para a desentorpecer. O gesto
pareceu despertar Sutherland. Olhou fixamente para a mão de Christian. Jervaulx,
disse, num tom incongruentemente suave, vou matar-te por causa disto. Nem
sequer pronunciou bem o nome, soou desajeitado. Demasiada ênfase no J e
no X. Num momento arrepiante como aquele, a mente de Christian teve uma
reacção absurda e repetiu a pronúncia exacta do seu título: Shervoh -
Sbervoh - Sbervoh... Não proferiu palavra, estendeu a mão e voltou a dobrar
os dedos até os transformar num punho, algo que lhe pareceu difícil de fazer.
Sentia o braço pesado, como se adormecido, e um formigueiro percorria o
interior dos ossos dos dedos. Os nomes dos teus padrinhos, disse Sutherland num
tom mais elevado e com maior agressividade. Quero os nomes deles. Durham. E o
coronel Fane. Era inevitável. Mas surpreendeu-se por se sentir tão estranho. Enquanto
se olhavam, o relógio marcou mais dez segundos. Canalha. Fora da minha casa!»
In
Laura Kinsale, Flowers from the Storm, Flores na Tempestade, 2008, ISBN
978-989-626-121-4.
Cortesia de EArqueiro/JDACT