De
Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…)
O meu bisavô, na impossibilidade de se desfazer de todos os seus bens, do pé
para a mão, a um preço justo, por baixo de mão enterrou toda a reserva de ouro
que possuía para não a desbaratar. O espírito na altura era: o amanhã é uma incógnita e nunca sabemos
quando é que o destino troca as voltas aos nossos pés e nos traz de volta para
calcar um vestígio antigo que a nossa lucidez procura esconder, face à incapacidade
de esquecer. Foi a decisão mais acertada, no meio da enrascada, aquela que
facilitou o renascer das cinzas quando se viram de pés e mãos atadas, depois de
terem estado com o pé no estribo. A mão morte, perante uma mão camaleónica
solidariamente estendida, permitiu que a queda fosse de pé, com tempo para
pensar, pé ante pé, a condição de cristão-novo. O anfitrião tinha abraçado com
seriedade e zelo a nova religião. Ao ver o regresso de todos, baptizados, ficou
com a ideia de que as suas palavras, a pés juntos, tinham surtido efeito, longe
de imaginar as peripécias que compuseram e aventura. Para ele, a penúria estava
directamente relacionada com a insistência em cultivar a fé mosaica, o facto de
terem batido o pé até à última. E tinha alguma razão, digo
alguma
porque isso não é nenhum a garantia. Patenteava vários aspectos do ritual
cristão no seu dia-a-dia, mesmo na intimidade familiar ou privacidade do seu
lar, e foi assim, de alma transparente, que ele recebeu os seus hóspedes, isto
é, pôs a nu tudo o que de mais sincero ia no seu âmago. A recepção foi feita
num ambiente festivo, com direito a um banquete de boas-vindas composto, quase
exclusivamente, por alimentos impróprios para consumo humano e que deveriam ser
rejeitados, segundo as regras alimentares do nosso povo, mas bater o pé era
proibido, face à condição em que se encontravam. O norte era algo que os meus
antepassados não conheciam, naqueles dias. Todavia, a avaliar pelas palavras da
minha avó, a única certeza reinante era o repúdio por tudo aquilo que se
passava e, consequentemente, a rejeição cada vez mais consciente da nova
religião, contudo, a capacidade de contenção era tão importante como aceitar o
baptismo. Olhavam com desconfiança para tanta boa vontade e para as motivações
do antigo rabino. O facto é que aquilo tudo causava alguma apreensão, uma vez
que as práticas judaizantes faziam parte do dia-a-dia deles, aliás, como
continuam a fazer. A coabitação tornava-se perigosa e é crível que da
amabilidade à hostilidade estava o cair da ficha. Ele não hesitaria em
denunciá-los, caso notasse que tais práticas continuavam a verificar-se. Esse
era o perigo mais iminente, mas qualquer outra imprudência fora da intimidade
familiar, que conduzisse ao escapar de algum indício, também o levaria a pagar,
em conjunto com eles, uma factura bastante elevada.
Se
dependesse da vontade nua e crua dos meus bisavós, estaria a relatar tudo isto
noutro lado qualquer. Onde, não sei, mas aqui não seria! Contra a própria vontade,
acabaram por erguer aquela que hoje é nossa casa, a algumas centenas de pés do
local onde, solidariamente, foram acolhidos. Nessa altura, assistia-se ao
regresso de muitos que optaram pela expulsão, arrastavam-se de volta por todos
os meios possíveis. Preferiram claramente o sofrimento a que eram sujeitos em Castela.
Encontraram sofrimento tanto no alto mar como em terra.
Com
eles chegaram os piores relatos acerca. dos que partiram, foram morros pelos turcos
para lhes roubarem o ouro que haviam engolido, passaram fome e foram
consumidos pela peste, foram lançados nus, pelos capitães dos navios, às ilhas
desertas e aos mares, depois de espoliados dos seus haveres, foram vendidos
como serviçais em Génova e, os que chegaram aos portos no norte de África, como
era seu desejo, acabaram saqueados e assassinados. Passou a fazer parte do
quotidiano dessa gente, minha gente de outros tempos, visitar e procurar
aqueles que regressavam na esperança de alguma vez se saberem notícias dos seus
que, um dia, contra a sua vontade, se
tinham afastado em busca de um direito, o direito à paz! Foi assim
durante meses, até chegar a confirmação do pior cenário, alcançaram terra firme
e todos tiveram o mesmo destino. Triste
fadário!» In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De
Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições
Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.
Cortesia
de Colibri/JDACT