quinta-feira, 23 de abril de 2015

Minha Cruzada Pró Portugal. Santa Maria. Henrique Galvão. «O povo, cego e muito mais crédulo do que crente, isolado, pela censura […] só muito mais tarde compreenderia quanta vaidade doentia, se ocultava sob a opa de simplicidade e modéstia que ele envergava»

jdact e wikipedia

Como se instalou e tem subsistido a ditadura em Portugal
«Quando em Portugal de 1926, o Exército, minado pela política mas ainda dotado de certa coesão, autoridade e sentido histórico, baniu violentamente do poder e da administração do país os partidos políticos, aos quais muito passionalmente se atribuíam todas as responsabilidades de uma situação insustentável, esse exército encontrou-se, automaticamente, sob o peso de responsabilidades que excediam enormemente a sua missão e funções específicas, as responsabilidades de governar. Não tendo assaltado o poder por apetites de mando, considerava as responsabilidades e riscos que resultavam da sua intervenção na política e procurava, quanto antes, entregar a quem de direito, o pesado fardo que pusera aos ombros. Entretanto, seria uma ditadura tornada provisoriamente necessária para o restabelecimento de bases sérias de política, de governo e de administração. A questão de regímen não estava em causa: continuaria a ser a República. Os problemas a resolver, mais instantes para a tranquilidade, honra e futuro da nação eram: primeiro, finanças e administração; depois, o das instituições e o da organização política e económica, problemas que, evidentemente, se punham no quadro geral dos sentimentos democráticos tradicionais do povo e em vista a reformas sociais urgentíssimas. A gestão financeira dos primeiros tempos da ditadura militar foi desastrosa. Porém, certa reserva de optimismo e de confiança mantida na população, evitou a sublevação geral dos descontentamentos, preparando admiravelmente o terreno para o êxito de um futuro ditador das finanças. Esta missão, antes recusada por outros professores de finanças, foi confiada a um obscuro professor de Coimbra chamado António Oliveira Salazar, que, ao mesmo tempo, assomava nas colunas de um jornal católico e que, em tímidos folhetos, reclamava para si direitos e liberdade que mais tarde negaria a todos os portugueses. Esse professor Salazar tinha fama de homem probo, temente a Deus e técnico competente. Servido pelo ilimitado crédito de confiança que, perante a desastrosa administração financeira dos militares, quase toda a população imediatamente lhe abriu, esse é que foi o milagre colectivo, que a vaidade de Salazar nunca permitiu que se proclamasse, não lhe foi difícil, pela simples aplicação dos seus conhecimentos de técnico, e sem as dificuldades que outros técnicos eminentes haviam encontrado em regímen parlamentar caótico, alcançar o primeiro êxito orçamental e proclamar então, mas como próprio, o milagre colectivo da nação. Do seu fundo messiânico, a nação acreditou no homem providencial, com a mesma fé que emprestava a curandeiros e às mulheres de virtude. Entusiasmou-se pelo ditador e, partindo do reconhecimento das suas qualidades frias de técnico, consagrou-o, precipitadamente, como homem de todas as virtudes, inclusive das que mais evidentemente lhe faltavam. A sua vaidade, tanto mais perigosa quanto mais se apregoava a sua modéstia, conheceu então as primeiras satisfações; e a sua sagacidade de rústico mostrou-lhe que a melhor maneira de manter a ilusão popular e de gozar os seus prazeres de mito, consistia em se mostrar o menos possível, em fugir aos contactos directos com o povo, salvando-se, assim, do risco de vir a ser conhecido na verdade crua da sua personalidade. E isto conseguia-o ele tanto mais facilmente quanto, de facto, alcançado tudo quanto ambicionava e lhe aprazia, o mando discricionário, só teria de sacrificar o que lhe era indiferente ou desagradável: o convívio social, os prazeres humanos dos espectáculos e das mulheres, as distrações do homem comum, etc. Assim se apossou definitivamente do milagre e principiou a constituir a sua carapaça de intangível que, pelo tempo fora, protegeria também um mito de infalibilidade. O povo, cego e muito mais crédulo do que crente, isolado, pela censura, dos democratas que podiam esclarecê-lo, só muito mais tarde compreenderia quanto ódio rusticano, quantos despeitos recalcados, quanta vaidade doentia, se ocultava sob a opa de simplicidade e modéstia que ele envergava». In Henrique Galvão, Minha Cruzada Pró-Portugal, Santa Maria, Livraria Martins, Brasil, 1961, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Cortesia de LMartins/JDACT