«A nossa história situa-se nos tempos da dinastia Mongol (1280-1368),
no reinado de Chih-ho, harmonia alcançada,
1328). Nessa altura vivia em
Kua-ts'ang-shan, a Montanha vestida de
azul, um dhûta, ou seja um monge budista, cujo templo era chamado
Ku-feng, Cume Deserto. Nascera no
condado de Chuchow, na província de Chekiang, e, na sua mocidade, fora um aluno
brilhante da teoria política de Confúcio, destinado a vir ocupar um alto posto no
governo. As suas tendências, porém, levavam-no a inclinar-se mais para a
meditação e para a reflexão filosófica das origens e da essência das coisas do
que para a actividade prática de um governo oficial. Quando ainda andava de fraldas
costumava murmurar uns sons incompreensíveis que se assemelhavam muito à lenga-lenga
de um estudante a decorar textos clássicos. Isto deixava os pais admirados. Um
dia veio bater-lhes à porta um mendigo que era monge e andava a pedir esmola
para uma obra piedosa. A criada trazia o menino ao colo quando veio abrir. O monge,
ao ouvir a criança balbuciar num tom entre o riso e o choro, encheu-se de espanto
e exclamou: mas o que ele diz são máximas tiradas do célebre Leng-yen-ching, Sutra da Severidade
Angular!, traduzido para chinês em 1312.
É isso que o menino está a recitar. Não há dúvida de que reincarnou nele a alma
de um antigo santo, o qual fala pela sua boca. E dirigiu-se aos pais da
criança, pedindo para lhes confiarem o filho; despertaria nele a vocação
religiosa e torná-lo-ia seu discípulo. Os pais, que eram adeptos convictos e
esclarecidos de Confúcio, consideraram aquelas palavras como uma superstição
tola e recusaram, indignados. O pai começou muito cedo a ensinar-lhe a escrever
e a ler os livros clássicos. O rapazinho dava mostras de uma compreensão rápida
e extraordinária; bastava ler uma única vez um texto para este lhe ficar gravado
na memória a ponto de o recitar de cor. Contudo, caso estranho, logo de
princípio a sua tendência ia para os escritos budistas. Muitas vezes o pai o
surpreendeu a interromper os estudos para se dedicar secretamente à leitura dos
sutras budistas. O pai e a mãe repreendiam-no severamente, chegando mesmo a
castigá-lo com varadas, sem que ele renunciasse a esta secreta ocupação.
Chegou o momento crítico em que as tranças esticadas, emblema
da meninice, se desmancham para dar lugar a madeixas lisas. O menino transformara-se
num jovem. Não tardou a chegar a altura do primeiro exame e o pai
mandou-o para a academia da província a fim de se preparar. Aí distinguiu-se de
tal forma que o director o nomeou seu assistente e monitor junto dos outros
alunos. No entanto o rapaz mostrava-se pouco interessado em passar nos exames;
não se sentia atraído por um lugar de carreira tradicional no governo nem pelos
êxitos mundanos que os pais lhe prometiam. Então, pouco tempo depois de ter
feito o primeiro exame, os pais morreram e ele encontrou-se livre para seguir a
sua inclinação. Observou, claro está, os três anos de luto tradicionais, como
competia a um filho dedicado, mas depois pôs em prática o projecto, há muito
amadurecido, de renunciar, ao mundo. Distribuiu sem hesitar a herança, a sua
casa, as suas terras e dez mil moedas de prata, pelos membros da família. Fez com
as suas próprias mãos um saco de coiro, reuniu os escassos objectos
indispensáveis a um eremita, um cajado, uma esteira para orar, alguns
pergaminho e sutras, mandou rapar o cabelo e dirigiu-se às montanhas para ali
viver como eremita». In Li Yii, Jou Pu Tuan, Círculo de Leitores,
Tradução de Maria Isabel Braga, Novembro de 1982.
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