Eu.
Memória
«No
calor morria e nesse medo matava rasgando capim folhas lianas a tiros de raiva
e metal escaldante metralha a abrir o caminho para hoje percorrido comigo desde
o meu corpo espalmado na terra a beber o suor e o sangue e os olhos fechados
invocavam imagens e logo se abriam para a dor real naquele longe de casa que eu
era rastejando entre os silvos e explosões zumbidos aos ouvidos meus sentidos
todos na fusão com o nada e desesperado disso que eu sabia ser tarde para a escolha
que não fiz e matava e no meio desse calor morria e me abria o caminho da justiça
sem voz já o silêncio pesava e prometia delírios de possesso que os tive e
deles saí já homem sem o resgate que quis e sempre perseguindo este meu futuro
que na verdade vem da mais aguda dor da morte da mais monstruosa memória que a
antecede humedecida com uma lágrima ainda que caída dos olhos ou do que resta
dos olhos no meio de uma cabeça rebentada a tiros os mesmos com que cheguei a
esta tão nítida visão de um corpo o meu suspenso e trespassado a caminho da
terra quente gretada mas assim mesmo prenhe a acolher-me numa envolvente
fertilidade como a um feto regressando à madre não obstante meu dedo lesto no
gatilho a disparar-me em cada uma das minhas balas encharcando-me com o sangue
do mundo e o sofrimento e a violência que do berço me vinham ensinando a
imaginar e então pensei só no acertar que é também uma angústia e um modo de
sobreviver no mato ou algures quer a morte ou a vida sejam quer apenas em
metáforas soldados de chumbo castelos aviões e pistolas de infância e também os
inofensivos jogos de adulto explodindo e desintegrando-se no delírio que passou
através dos ferros brancos da cama qual fera rebentando sua jaula ou desejado
diabo redentor saltando em cima da minha barriga e então nasci de súbito
confirmando o celerado que disse ser a morte o princípio de toda a vida e eu
nela com a memória do meu princípio assim neste visitar-me e reconhecer o rosto
e o gesto uma paragem brusca um espanto de aqui estar a convencer-me de razões
para comigo que sei como se morre nesta guerra de todos os anos discreta guerra
de poucos mortos por semana e bondosas senhoras que mandam tantos presentes
para os valentes soldados e os mais valentes de todos e os que mais matam vêm
de medalha ao peito matar saudades à terra onde estoiram foguetes e sai a banda
e é portanto a morte o princípio de tudo este nada estes heróis estas bandeiras
pesados como um remorso atrás das impenetráveis paredes de pedras grandes lajes
dos túmulos dos reis e dos santos muros de castelos conventos catedrais lendas
profecias fantasmas e o mar que é nosso e dele nós e as ilhas e as terras e os
escravos e a pimenta e o ouro e o marfim pesados como uma herança que havemos
de gastar até ao último cruzado que é o preço de tudo quanto perseguimos e está
no vento e dentro de nós respira e pulsa nossa ânsia e combate nosso doce e nosso
amargo que eu na morte chorei e gritei e clamei pelo nome de liberdade uma
suspeita uma vontade que é nossa nossa ainda que emparedados neste passado de
névoa de onde só nós poderemos sair vivos mesmo quando ou só quando chegados para
demolir as velhas casas da família primeiro os painéis de azulejos o da entrada
com o pajem empunhando o bastão e os outros nos vãos das janelas junto aos bancos
de pedra com aves e cornucópias de um mundo azul e branco sobre as tábuas carunchosas
o pó antigo deslizando para dentro de caves frescas garrafeiras vazias teias de
aranha e baús e depois as paredes e os metros quadrados para o edifício de
quatro andares e assim até à liquidação total da qual sobram mancas mobílias de
estilo que não cabem em parte nenhuma o arcabuz os candelabros e a colecção da illustration com gravuras da guerra da Crimeia
e da guerra russo-japonesa folheadas na infância durante a qual aprendi mal a
violência antes daquela minha morte daquele meu princípio e isso foi entre
beijos cachecóis xaropes bonitas palavras e respeito e tudo isto magoa tão
perto como um desmoronamento ainda no seu eco e estas paragens de capricho para
sem lamentos assumir a terraplanagem que começamos nós que do napalm e da tortura só conhecemos o clarão
longínquo e os gritos e a terra queimada e as feridas e assim dizemos o não que
não fazemos». In Álvaro Guerra, Memória, Editorial Estampa, Lisboa, 1971.
Cortesia
EEstampa/JDACT