Um
Noir Baiano
«Com vinte e dois anos, grandes
olhos cor de mel, cabelos dourados e pele permanentemente bronzeada, Sereia
tinha seios fartos e pernas intermináveis. Era a nova rainha da música pop e aquele seria o carnaval de sua
consagração. Com mais de um metro e oitenta, além das plataformas de quase dez
centímetros, e uma grande voz, grave e potente, Sereia era uma jovem cantora de
Ilhéus que em dois anos saiu dos barzinhos de Salvador para a glória nacional,
invadiu as telas de TV e as ondas do rádio, vendeu mais de dois milhões de
discos, estrela comercial e especiais de televisão, saiu nua na Playboy e
se transformou no milionário objecto de desejo nacional. Sim, Sereia era o seu
nome verdadeiro, ela foi baptizada como Sereia Maria Oliveira, uma promessa de
sua mãe para Iemanjá, que lhe
apareceu num sonho dizendo que a menina que esperava teria cabelos de ouro e
olhos de mel, seria bonita, rica e famosa, e se chamaria Sereia. Quando a
menina nasceu, ela consultou a sua mãe-de-santo, que jogou os búzios várias
vezes e confirmou que Sereia conquistaria a fama e a fortuna, mas não seria
feliz por muito tempo. Ao longo da sua breve carreira e até morrer, Sereia
sempre esteve nas mãos de dois homens. E de uma mulher.
A sua trajetória fulminante foi
construída com a ajuda decisiva de um produtor artístico, Paulinho Jesus, que a
descobriu, desenvolveu e dirigiu, e de um talentoso e poderoso publicitário
baiano, Tuta Tavares, que bancou a produção milionária e criou as estratégias
de marketing que a transformaram numa
estrela da noite para o dia. Gordo e gay,
irresistivelmente simpático e inteligentíssimo, dono de uma grande agência com
escritórios em São Paulo e Salvador, Tuta também trabalhava para vários
políticos, entre eles o governador do Estado, Juracy Bandeira, o legendário
Jotabé. Quando Sereia morreu, ele estava em campanha para uma dificílima e
decisiva reeleição, aos setenta anos, bombardeado por escândalos, roubalheiras
e até acusações de mortes. A oposição e os inquéritos avançavam, as intenções
de voto caíam dramaticamente e os velhos aliados vacilavam. Se perdesse,
estaria liquidado: com a oposição no governo, os tempos de poder quase absoluto
poderiam terminar até na cadeia.
Os dois que se diziam criadores
de Sereia acabaram sendo vítimas do seu próprio veneno. Como a Bahia e depois
todo o Brasil, eles também se apaixonaram por ela, mas por motivos diferentes.
Paulinho apaixonou-se perdidamente por sua própria criatura, viveu com ela um
romance turbulento e acabou sendo traído e abandonado. Tuta, talvez porque
fosse uma bicha gorda e se visse nela magro e gostoso, feminino e sedutor,
encontrou em Sereia o seu ideal feminino realizado. E também seu instrumento de
poder. Ela seria a sua principal arma na campanha do governador, seriamente
ameaçado pelo candidato da oposição. Com Sereia cantando, as multidões
encheriam as praças para ouvir o velho líder, que do alto de seus mais de cem
quilos, mais uma vez encantaria as massas com os seus discursos inflamados e
populistas, a sua língua ferina, seu humor devastador e o seu maior charme: uma
espécie de dengo viril emprestado de Caymmi e de ACM, que seduzia homens e
mulheres havia gerações. Com Sereia pedindo votos para ele e cantando o jingle de campanha nos comerciais de televisão,
a vitória seria certa. A menos que ela recusasse os milhões que eles lhe ofereciam
e resolvesse fazer a campanha da oposição, de graça, como queria e ameaçava
Mara Moreira, a empresária de Sereia.
Mara era uma morenaça paulista,
vigorosa e eficiente, de corpo atlético e raciocínio rápido, especialmente para
números. Mara também sempre foi louca por Sereia, mas por outros motivos,
embora parecidos com os de Tuta e Paulinho. Além de ganhar, merecidamente,
caminhões de dinheiro em comissões pelos contratos de shows e discos e comerciais que negociava com dureza e que executava
com competência, ela queria mais, queria tudo, queria Sereia inteira para si.
Tinha uns dez anos mais que Sereia, era de uma beleza dura, com cabelos castanhos
e curtos, um nariz de grande personalidade e profundos olhos negros. Mara
sentia-se ameaçada de perder Sereia para a Megastar, nova agência artística que
Tuta estava criando na surdina, recrutando e pagando a peso de ouro os melhores
profissionais do mercado. Para Mara, Sereia não precisava mais de Tuta para
nada. E sua associação com o governador Jotabé seria desastrosa. Foi o que ela
me disse às vésperas do carnaval, depois da entrevista colectiva de Sereia no bar
da piscina do Hotel da Bahia, quando me contratou para formar uma equipa de
segurança para proteger Sereia no desfile de carnaval. Como se sabe, nós
fracassámos. A cabeça de Sereia estava virada para o lado numa poça de sangue,
os olhos esbugalhados e a boca aberta, como se fosse cantar. Na rua o vozerio
era ensurdecedor, no alto do trio seguranças formavam uma barreira em volta do
seu corpo. Um médico apresentou-se, se abaixou sobre ela, tomou-lhe o pulso e balançou
a cabeça. Não era necessário ser médico para saber o que tinha acontecido. A
notícia se espalhou rapidamente pelo rádio e pela televisão, e a multidão que
ocupava o final da avenida Carlos Gomes e o Campo Grande se imobilizou». In Nelson
Motta, O Canto da Sereia, Um Noir Baiano, Editora Objectiva, 2002, ISBN
857-302-482-8.
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