Crónica
das horas aparentes. Sono. Sonhos
«Que
perdi a memória, dizem. E logo dão um nome a esta imunidade que pretendem
retirar-me. Dizem isso com precaução e manha como se quisessem disfarçar o
despeito. Defendo-me. Só agora, na metade do tempo em que a droga do sono se
esgota e sei que é meu o que me circula nas veias, só agora me visito:
primeiro, o estojo duro e branco que esconde o grande golpe na coxa direita, as
ligaduras que encontro ao passar a mão pela testa. Também procuro os resíduos
invisíveis das anestesias e só me revelo um estranho gosto na boca. É uma visita
tosca e breve, que se cansa de mim ou me recusa para repousar nas quatro
paredes brancas e no tecto branco e nos brancos panos da cama, simetria nem ao
de leve desfeita pelos rectângulos da porta e da janela velada por cortinas de
cassa tão leves que, constantemente ondulantes, me repetem a existência do ar
em movimento, ar sossegado, filtrado, prisioneiro e puro, e não com partículas
de sal lançadas em bátegas por um vento furioso varrendo as duríssimas arestas
das rochas, imagem última, única, fria, dureza e frio diversos dos que adivinho
nas superfícies polidas do copo e do jarro sobre a mesa, ao meu lado esquerdo,
onde, consoante o sol, assim o filtram no seu vidro sem que dele conservem o
menor rasto, que não de mim, pois neles vou imprimir com os dedos minuciosos
desenhos a lembrar outras matérias, talvez tronco cortado pelo nó, talvez... Tudo
o que está fora de mim reconheço, só o tempo me deixou, tal como se alguém
bebesse de um trago toda a água até então imóvel dentro desse jarro cilíndrico
e esguio com seu pescoço de ganso e sua boca de serpente, eu que vagamente me
obrigo a pensar no corpo da mulher que veio, há pouco, dizer-me que perdi a
memória e unir os seus lábios aos meus tão levemente como a ondulação das cortinas
quase transparentes a embaciarem o verde-escuro da árvore lá fora, visita tão
breve como o beijo e o nome, o seu, e um obstinado brilho nos olhos que irremediavelmente
reconhecerei, mais tarde. Voltará.
Em
vão procuro uma imperfeição na lisura destas paredes, um pouco de estuque
falhado, uma mancha de humidade, uma fissura que confirme os meus planos, a
utopia... Memória e palavra convivem perfeitamente. Uma excepção, um instante,
claro. Eu trazia em mim um projecto de perdição, não este, mas a profunda
recusa da morte mansa e doméstica, e afinal soube, ao regressar do sono,
conhecer a dor, a fome, a sede, o copo, o vidro, a cortina ondulante, o ar em
movimento, apenas não me reconheci e aceitei com indiferença um nome que
disseram ser o meu. Por outro lado, as palavras são, sem que as pronuncie, mais
fluentes que nunca e ganham a fulgurância dos projécteis infalíveis e a
suavidade ambígua de uma sabedoria que finge ignorar a sua história. Mas isto
não vai durar e começou a perder-se no momento em que despertei porque, ainda
que do tempo não encontre a medida, o primeiro fragmento ocupou o seu lugar no puzzle, com a visita da mulher e o beijo
e a palavra memória na sua boca...
Que
sabia levemente a sangue e se ocupava sabiamente da minha língua, sem poder
evitar uma desagradável colisão de dentes, boca furtiva e apressada, como a
minha mão procurando o seio que nela cabia e cuja ponta endurecia onde a linha
da vida encontra a do coração; sem palavras e só com o nosso medo e um pouco do
medo dos outros, fomos a uma cave fria, cheia de objectos de um outro tempo e
esquecidos, entre os quais se contavam um gigantesco corno da abundância, um
barómetro sem ponteiro, um retrato do Kaiser, três cadeiras partidas, um molho
de chaves ferrugentas e uma velha mesa de cozinha manchada por qualquer
misterioso líquido, sobre a qual nos deitámos e eu descobri as virilhas brancas
e macias onde tudo acabou no esforço desajeitado de ir mais além, num jacto
quente e espesso que ela cuidadosamente limpou com o avental que nem sequer
tinha tirado. Não trocámos uma palavra... Com as palavras e uma presença
indecisa, eis que começo a morrer de novo». In Álvaro Guerra, O Capitão Nemo
e Eu, Crónica das horas aparentes, Publicações dom Quixote, 1973, 2000, ISBN
972-201-828-0.
Cortesia
de BN/PdQuixote/JDACT