Um
rescaldo, 319 DR
«(…)
Arlen foi buscar as preciosas ferramentas às traseiras da carroça. O metal era
escasso no Ribeiro e o seu pai orgulhava-se das duas pás, da picareta e da
serra. Teriam grande uso naquele dia. Quantos se perderam?, perguntou Jeph,
apesar de parecer não querer saber realmente. Vinte e sete, respondeu Selia.
Silvy engasgou-se e cobriu a boca, com os olhos marejados de lágrimas. Jeph
tornou a cuspir. Há sobreviventes? Perguntou. Alguns, disse Selia. Manie,
apontou com o cajado um rapaz de pé, olhando a pira funerária. Correu até minha
casa na escuridão. O espanto de Silvy foi sonoro. Nunca ninguém conseguira fugir
para tão longe e sobreviver. As guardas na casa de Brine Lenhador resistiram
durante a maior parte da noite, prosseguiu seria. Ele e a família assistiram a
tudo. Alguns dos outros fugiram aos nuclitas e refugiaram-se junto dele
até o fogo alastrar e incendiar o telhado. Aguardaram na casa em chamas até as
traves começarem a estalar e, depois, arriscaram-se no exterior durante os
minutos que antecederam o nascer do sol. Os nuclitas mataram Meena, a
mulher de Brine, e Poul, o seu filho, mas os outros salvaram-se. As queimaduras
irão sarar e as crianças ficarão bem com o tempo, mas os outros... Não precisou
de terminar a frase. 0s sobreviventes de um ataque de demónios acabavam por
morrer pouco depois. Nem todos. Nem sequer a maioria. Mas os suficientes.
Alguns acabavam com a própria vida e outros limitavam-se a olhar o vazio, recusando
comer ou beber enquanto definhavam. Dizia-se que só se podia considerar ter
sobrevivido a um ataque depois de passado um ano e um dia. Resta uma dúzia de
desaparecidos, disse Selia, com pouca esperança na voz. Vamos desenterrá-los
afirmou Jeph, olhando as casas desabadas, muitas ainda envoltas em chamas
ocasionais. Os lenhadores construíam as casas sobretudo com pedra, para se protegerem
do fogo, mas até a pedra ardia se as guardas falhassem e se um número
suficiente de demónios flamejantes se reunisse no mesmo local.
Jeph
juntou-se aos outros homens e a algumas das mulheres mais fortes na remoção do
entulho e no transporte dos mortos até à pira. Os corpos precisavam de ser
incinerados, claro. Ninguém quer ser enterrado no chão de onde demónios se
erguiam todas as noites. O Protector Harral, com as mangas da túnica enroladas
e os braços grossos expostos, erguia pessoalmente cada um e lançava-o ao fogo,
murmurando orações e traçando guardas no ar enquanto as chamas os envolviam.
Silvy juntou-se às mulheres que reuniam as crianças mais pequenas e cuidavam
dos feridos sob o olhar atento da Herbanaria do Ribeiro, Coline Trigg. Mas não
havia erva capaz de apaziguar a dor dos sobreviventes. Brine Lenhador, também
chamado Brine Ombros Largos, era um
homem grande com porte de urso e uma gargalhada trovejante, que costumava
atirar Arlen ao ar quando vinham trocar alimentos por madeira. Agora,
sentava-se sobre as cinzas junto à sua casa arruinada, embatendo lentamente com
a cabeça contra a parede negra. Murmurava para si próprio e passava as mãos
pelos braços, como se tivesse frio. Arlen e as outras crianças foram
encarregues de trazer água e de procurar madeira utilizável nas pilhas.
Restavam alguns meses quentes no ano, mas não haveria tempo para cortar madeira
suficiente para aguentar todo o Inverno. Voltariam a queimar estrume e a casa
tresandaria. Novamente, Arlen sentiu-se dominar pelo remorso. Não estava na
pira, nem a bater com a cabeça pelo choque de ter perdido tudo. Havia sinas
piores do que uma casa a cheirar a estrume. Mais e mais aldeãos foram chegando
com o avançar da manhã. Trazendo as famílias e os mantimentos que pudessem
dispensar, vinham do Charco da Pesca e da Praça Central. Vinham da Colina da
Charneca e do Pântano Encharcado. Alguns vinham mesmo de Vigia-Sul. E, um a um,
Selia recebeu-os com as más notícias e distribuiu-lhes tarefas». In
Peter Brett, O Homem Pintado, tradução de Renato Carreira, Edições Gailivro,
1001 Mundos, 2009, ISBN 978-989-557-677-7.
Cortesia
de Gailivro/JDACT