sábado, 30 de maio de 2015

O Homem Pintado. Peter Brett. «… com uma promessa de morte aos que forem suficientemente tolos para enfrentar a escuridão crescente. Quando o sol se põe, não resta alternativa senão abrigarem-se atrás de guardas mágicas…»

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Um rescaldo, 319 DR
«(…) Arlen foi buscar as preciosas ferramentas às traseiras da carroça. O metal era escasso no Ribeiro e o seu pai orgulhava-se das duas pás, da picareta e da serra. Teriam grande uso naquele dia. Quantos se perderam?, perguntou Jeph, apesar de parecer não querer saber realmente. Vinte e sete, respondeu Selia. Silvy engasgou-se e cobriu a boca, com os olhos marejados de lágrimas. Jeph tornou a cuspir. Há sobreviventes? Perguntou. Alguns, disse Selia. Manie, apontou com o cajado um rapaz de pé, olhando a pira funerária. Correu até minha casa na escuridão. O espanto de Silvy foi sonoro. Nunca ninguém conseguira fugir para tão longe e sobreviver. As guardas na casa de Brine Lenhador resistiram durante a maior parte da noite, prosseguiu seria. Ele e a família assistiram a tudo. Alguns dos outros fugiram aos nuclitas e refugiaram-se junto dele até o fogo alastrar e incendiar o telhado. Aguardaram na casa em chamas até as traves começarem a estalar e, depois, arriscaram-se no exterior durante os minutos que antecederam o nascer do sol. Os nuclitas mataram Meena, a mulher de Brine, e Poul, o seu filho, mas os outros salvaram-se. As queimaduras irão sarar e as crianças ficarão bem com o tempo, mas os outros... Não precisou de terminar a frase. 0s sobreviventes de um ataque de demónios acabavam por morrer pouco depois. Nem todos. Nem sequer a maioria. Mas os suficientes. Alguns acabavam com a própria vida e outros limitavam-se a olhar o vazio, recusando comer ou beber enquanto definhavam. Dizia-se que só se podia considerar ter sobrevivido a um ataque depois de passado um ano e um dia. Resta uma dúzia de desaparecidos, disse Selia, com pouca esperança na voz. Vamos desenterrá-los afirmou Jeph, olhando as casas desabadas, muitas ainda envoltas em chamas ocasionais. Os lenhadores construíam as casas sobretudo com pedra, para se protegerem do fogo, mas até a pedra ardia se as guardas falhassem e se um número suficiente de demónios flamejantes se reunisse no mesmo local.
Jeph juntou-se aos outros homens e a algumas das mulheres mais fortes na remoção do entulho e no transporte dos mortos até à pira. Os corpos precisavam de ser incinerados, claro. Ninguém quer ser enterrado no chão de onde demónios se erguiam todas as noites. O Protector Harral, com as mangas da túnica enroladas e os braços grossos expostos, erguia pessoalmente cada um e lançava-o ao fogo, murmurando orações e traçando guardas no ar enquanto as chamas os envolviam. Silvy juntou-se às mulheres que reuniam as crianças mais pequenas e cuidavam dos feridos sob o olhar atento da Herbanaria do Ribeiro, Coline Trigg. Mas não havia erva capaz de apaziguar a dor dos sobreviventes. Brine Lenhador, também chamado Brine Ombros Largos, era um homem grande com porte de urso e uma gargalhada trovejante, que costumava atirar Arlen ao ar quando vinham trocar alimentos por madeira. Agora, sentava-se sobre as cinzas junto à sua casa arruinada, embatendo lentamente com a cabeça contra a parede negra. Murmurava para si próprio e passava as mãos pelos braços, como se tivesse frio. Arlen e as outras crianças foram encarregues de trazer água e de procurar madeira utilizável nas pilhas. Restavam alguns meses quentes no ano, mas não haveria tempo para cortar madeira suficiente para aguentar todo o Inverno. Voltariam a queimar estrume e a casa tresandaria. Novamente, Arlen sentiu-se dominar pelo remorso. Não estava na pira, nem a bater com a cabeça pelo choque de ter perdido tudo. Havia sinas piores do que uma casa a cheirar a estrume. Mais e mais aldeãos foram chegando com o avançar da manhã. Trazendo as famílias e os mantimentos que pudessem dispensar, vinham do Charco da Pesca e da Praça Central. Vinham da Colina da Charneca e do Pântano Encharcado. Alguns vinham mesmo de Vigia-Sul. E, um a um, Selia recebeu-os com as más notícias e distribuiu-lhes tarefas». In Peter Brett, O Homem Pintado, tradução de Renato Carreira, Edições Gailivro, 1001 Mundos, 2009, ISBN 978-989-557-677-7.

Cortesia de Gailivro/JDACT