domingo, 31 de maio de 2015

Académico de Número no 31. Estudos de História da Cultura Portuguesa. Linguística e Paleo-Etnologia. Justino Mendes Almeida. «Gil Vicente é, assim, o único autor dramático português do século XVI cuja obra apresenta reais afinidades com a arte sua contemporânea»

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Obra da Geraçã Humana. Uma Bella Moralidade Quinhentista
«(…) Ainda relacionado com esta intervenção do Anjo, recorda-se o dito de Joam d'Acenha, extasiado com a angélica beleza:
 
Que nam teves[s]e nem ceitil
com minha filha ho casaria,

para o relacionar com estoutro do pastor ao Anjo, no final do Auto da Mofina Mendes:

Dizey senhor sois casado
ou quando embora casaes?

e com o passo do segundo Auto das Barcas:

Anjos ajudade me ora
que vos veja eu bem casados,

para se concluir que se trata de uma diversão tipicamente gil-vicentina. Ainda no prólogo, poderão os estudiosos comprovar a existência de arremedos de dança, tão ao gosto de Gil Vicente, como neste caso e em referência a Joam d'Acenha.

Baila ao som que / faz com a boca.
Tu/ru/lu/ru/ly.
Tu/ru/lu/ru/lã.
Huufaa.

Révah assinala ainda que neste auto se dão indicações precisas quanto ao vestuário da maioria das personagens, o que é habitual nos autos de Gil Vicente de que se conhecem edições melhores do que o texto contido na Copilacam de 1562. Ao estudar o tema dos quatro Doutores e a Santa Madre Igreja, Révah acentua que, de uma leitura, mesmo superficial, da Obra da Geraçã humana ressalta a profunda afinidade com o Auto da Alma, o que já em 1898 Teófilo Braga pusera em relevo. A conclusão vai mais longe ainda: é a Obra da Geraçã humana de 1520, ou de 1521, que explica o Auto da Alma de 1518. É inaceitável a hipótese, continua, de que o misterioso desconhecido, autor famoso da Obra da Geraçã humana, poeta de largos recursos e original, representando um auto perante a Corte, não se houvesse pejado de plagiar um tema de Gil Vicente de forma tão despudorada que toda a assistência se daria conta disso. É, porém, mais razoável admitir que Gil Vicente, autor da Obra da Geraçã humana, utilizasse neste auto um motivo que tinha criado e com ele obtivera grande êxito quando da representação do Auto da Alma. Ao analisar, por último, os argumentos de ordem artística, escreve Révah que a Custódia de Belém não é obra de um ourives qualquer; uma simples observação permite distinguir imediatamente na Custódia a preocupação de agrupar imagens numa ordem arquitectónica simbólica, cujo conjunto reproduz com exactidão o portal da Batalha. Gil Vicente, tornado poeta dramático, adopta desde Dezembro de 1514, data proposta para o Auto da Sibila Cassandra, o novo simbolismo introduzido na arte portuguesa por João Castilho. Gil Vicente é, assim, o único autor dramático português do século XVI cuja obra apresenta reais afinidades com a arte sua contemporânea. Mas deixámos para o fim a objecção de Costa Pimpão que consideramos mais poderosa, digamos, demolidora. Reduz-se a umas simples frases que até hoje não obtiveram resposta ou esclarecimento satisfatório:
  • Se os Autos (Obra da Geraçã humana e Auto de Deos Padre, Justiça e Misericordia) pertencem a Gil Vicente, pertencem, pelo estilo, a um Gil Vicente de segunda ou terceira ordem [...] A linguagem daqueles Autos, sem ser absolutamente inferior (antes aceitável em partes) não tem a dedada de Gil Vicente: falta-lhe geralmente a força, a naturalidade, a vida, o rapto lírico. É demasiado regular e fria, e a regularidade e a frieza não são características vicentinas.
De facto, assim é. Se o tema é digno de Gil Vicente, o estilo, a linguagem nem sempre favorece essa autoria, isto sem embargo de reconhecermos que o importantíssimo conjunto de argumentos apresentados por Révah lhe concede grande força, se bem que sejam desiguais em valor, ao pugnar pela autoria gil-vicentina da Obra da Geraçã humana, sem que, contudo, lhe fosse legítimo concluir, abertamente, pela restituição da obra a Gil Vicente». In Justino Mendes de Almeida, Estudos de História da Cultura Portuguesa, Academia Portuguesa da História, Universidade Autónoma de Lisboa, O Pernix Lysis, Lisboa, 1996.

Cortesia da APHistória/JDACT