Obra da Geraçã Humana. Uma Bella Moralidade Quinhentista
«(…) Ainda relacionado com esta intervenção do Anjo, recorda-se o dito de Joam d'Acenha, extasiado com a
angélica beleza:
Que nam teves[s]e nem ceitil
com minha filha ho casaria,
para o relacionar com estoutro do pastor
ao Anjo, no final do Auto
da Mofina Mendes:
Dizey senhor sois casado
ou quando embora casaes?
e com o passo do segundo Auto das Barcas:
Anjos ajudade me ora
que vos veja eu bem casados,
para se concluir que se trata de uma diversão tipicamente gil-vicentina.
Ainda no prólogo, poderão os
estudiosos comprovar a existência de arremedos de dança, tão ao gosto de Gil
Vicente, como neste caso e em referência a Joam d'Acenha.
Baila ao som que / faz com a boca.
Tu/ru/lu/ru/ly.
Tu/ru/lu/ru/lã.
Huufaa.
Révah assinala ainda que neste auto se dão indicações precisas quanto
ao vestuário da maioria das personagens, o que é habitual nos autos de Gil
Vicente de que se conhecem edições melhores do que o texto contido na Copilacam
de 1562. Ao estudar o tema dos
quatro Doutores e a Santa Madre Igreja, Révah acentua que, de uma leitura,
mesmo superficial, da Obra da Geraçã humana ressalta a
profunda afinidade com o Auto da Alma, o que já em 1898 Teófilo Braga pusera em
relevo. A conclusão vai mais longe ainda: é a Obra da Geraçã humana de 1520, ou de 1521, que explica o Auto da Alma de 1518. É inaceitável a hipótese, continua, de que o misterioso
desconhecido, autor famoso da Obra
da Geraçã humana, poeta de largos recursos e original, representando um
auto perante a Corte, não se houvesse pejado de plagiar um tema de Gil
Vicente de forma tão despudorada que toda a assistência se daria conta
disso. É, porém, mais razoável admitir que Gil Vicente, autor da Obra
da Geraçã humana, utilizasse neste auto um motivo que tinha criado e
com ele obtivera grande êxito quando da representação do Auto da Alma. Ao
analisar, por último, os argumentos de ordem artística, escreve Révah que a Custódia
de Belém não é obra de um ourives qualquer; uma simples observação
permite distinguir imediatamente na Custódia a preocupação de agrupar
imagens numa ordem arquitectónica simbólica, cujo conjunto reproduz com
exactidão o portal da Batalha. Gil Vicente, tornado poeta dramático,
adopta desde Dezembro de 1514, data
proposta para o Auto da Sibila Cassandra, o novo simbolismo introduzido na arte
portuguesa por João Castilho. Gil Vicente é, assim, o único autor
dramático português do século XVI cuja obra apresenta reais afinidades com a
arte sua contemporânea. Mas deixámos para o fim a objecção de Costa Pimpão que
consideramos mais poderosa, digamos, demolidora. Reduz-se a umas simples frases
que até hoje não obtiveram resposta ou esclarecimento satisfatório:
- Se os Autos (Obra da Geraçã humana e Auto de Deos Padre, Justiça e Misericordia) pertencem a Gil Vicente, pertencem, pelo estilo, a um Gil Vicente de segunda ou terceira ordem [...] A linguagem daqueles Autos, sem ser absolutamente inferior (antes aceitável em partes) não tem a dedada de Gil Vicente: falta-lhe geralmente a força, a naturalidade, a vida, o rapto lírico. É demasiado regular e fria, e a regularidade e a frieza não são características vicentinas.
De facto, assim é. Se o tema é digno de Gil Vicente, o estilo, a
linguagem nem sempre favorece essa autoria, isto sem embargo de reconhecermos
que o importantíssimo conjunto de argumentos apresentados por Révah lhe concede
grande força, se bem que sejam desiguais em valor, ao pugnar pela autoria
gil-vicentina da Obra da Geraçã humana, sem que, contudo, lhe fosse legítimo
concluir, abertamente, pela restituição da obra a Gil Vicente». In
Justino Mendes de Almeida, Estudos de História da Cultura Portuguesa, Academia
Portuguesa da História, Universidade Autónoma de Lisboa, O Pernix Lysis,
Lisboa, 1996.
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