segunda-feira, 1 de junho de 2015

A Rainha Descalça. Ildefonso Falcones. «Uma viagem a uma época apaixonante, marcada pelo preconceito e pela intolerância. De Sevilha a Madrid, desde o tumultuoso bulício dos ciganos até aos teatros senhoriais da capital…»

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Porto de Cádis, 7 de Janeiro de 1748
«Caridad hesitou no momento em que ia pôr o pé no cais de Cádis. Encontrava-se mesmo no fim da passarela da barcaça que os tinha desembarcado do La Reina, o navio da armada com valores que tinha acompanhado os seis navios mercantes registados com mercadorias preciosas desde o outro lado do oceano. A mulher levantou o olhar para o sol de inverno que iluminava o bulício e a agitação que se vivia no porto: estavam a descarregar um dos navios mercantes que viajara com eles desde Havana. O sol entrou pelas fendas do seu puído chapéu de palha e ofuscou-a. O alvoroço sobressaltou-a e encolheu-se assustada, como se os gritos fossem contra ela. Não fiques aí parada, pretinha!, disse-lhe o marinheiro que a seguia enquanto a ultrapassava sem cerimónia. Caridad desequilibrou-se e quase caiu à água. Outro homem que vinha atrás parecia disposto a ultrapassá-la, mas a mulher saltou desajeitadamente para o cais, afastou-se e parou de novo enquanto parte da marinhagem continuava a desembarcar entre risos, piadas e todo o tipo de apostas indecentes sobre a fêmea que os faria esquecer a longa travessia do oceano. Aproveita a tua liberdade, negra!, gritou outro homem quando passou perto dela, ao mesmo tempo que se permitia dar-lhe uma palmada surda nas nádegas. Alguns dos seus companheiros riram-se. Caridad nem se mexeu. Tinha o olhar fixo no rabo de cavalo comprido e sujo que, a dançar nas costas do marinheiro e a roçar a sua camisa esfarrapada ao ritmo de um andar irregular, se afastava em direcção à Porta do Mar.
Livre?, atreveu-se a perguntar-se. Que liberdade? Olhou para lá do cais, para as muralhas, onde a Porta do Mar dava acesso à cidade: grande parte dos mais de quinhentos homens que compunham a tripulação do La Reina iam-se amontoando em frente da entrada, onde um exército de funcionários, alcaides, cabos e fiscais, os inspeccionava à procura de mercadorias proibidas e os interrogava sobre a derrota das naus, caso alguma se tivesse desviado do comboio e da sua rota para contrabandear e burlar as finanças reais. Os homens esperavam impacientes que os trâmites rotineiros se cumprissem; os que estavam mais afastados dos funcionários, protegidos pela multidão, gritavam que os deixassem passar, mas os inspectores não cediam. O La Reina, majestosamente fundeado no canal do Trocadero, transportara nos seus porões mais de dois milhões de pesos e quase o mesmo número em marcos de prata lavrada, um dos tesouros das Índias, além de Caridad e de dom José, o seu amo. Maldito dom José! Caridad tinha cuidado dele durante a travessia. Peste das naus, disseram-lhe. Vai morrer, asseguraram-lhe. E na verdade chegou a sua hora após uma lenta agonia ao longo da qual o seu corpo se foi consumindo dia após dia entre tremendos inchaços, febres e hemorragias. Durante um mês, amo e escrava permaneceram fechados num pequeno e viciado camarote com apenas uma rede, à popa, que dom José, depois de pagar uma bela quantia, tinha conseguido que o capitão lhe construísse com tábuas, roubando espaço que era comummente utilizado pelos oficiais. Eleggua, que a sua alma nunca descanse, que vagueie errante, desejara Caridad apercebendo-se da poderosa presença do Ser Supremo, o Deus que rege o destino dos homens, no reduzido espaço. E como se o amo a tivesse ouvido, suplicou-lhe compaixão com os seus arrepiantes olhos biliosos enquanto lhe estendia a mão em busca do calor da vida que sabia que se lhe escapava. Sozinha com ele no camarote, Caridad negou-lhe esse consolo. Não lhe tinha ela estendido a mão quando a separaram do seu pequeno Marcelo? E o que fizera o amo? Ordenara ao capataz da plantação de tabaco que a segurasse e gritara ao escravo que levasse com ele o pequeno. E, fá-lo calar!, acrescentou no terreiro em frente da casa grande, onde os escravos se tinham reunido para saber quem seria o seu novo amo e que sorte os esperava a partir de então. Não suporto... O amo José calou-se de repente. O espanto dos escravos era evidente nos seus rostos. Caridad conseguira livrar-se do capataz com uma bofetada involuntária e fez menção de correr para o filho, mas rapidamente percebeu a sua imprudência e parou. Durante uns instantes só se ouviram os agudos e desesperados brados de Marcelo». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand Editora, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.

Cortesia Bertrand/JDACT