O
corsário de Malabar
«(…)
Pêro maravilha-se com o modo de navegação dos mouros, capazes de percorrer
distâncias longuíssimas naqueles zambucos, umas toscas embarcações, tão mal
construídas que metem medo mesmo a um homem avezado ao perigo como ele. Para
ocupar o espírito e não pensar nos riscos de naufrágio, vai tomando notas de
tudo quanto vê, tal como Sua Alteza lhe ordenara ao enviá-lo em viagem de
exploração e descoberta da derrota das especiarias. Tem como os demais
passageiros o seu gasalhado por cima da cobertura de canas, onde comem e
conversam uns com os outros, visto que pouco mais há a fazer além de contemplar
as povoações que se estendem ao longo da costa, como Curiate ou Mangalor do
reino de Guzarate. Já navegamos nesta jangada há quase duas semanas, suspira um
enfadado mocetão, sentado ao lado do pai. Não tardo a dar em doido. Tem a
cabeça rapada à navalha, com uma guedelha pequena no alto e o rosto sem barba,
apenas com um fino bigode a cobrir-lhe o lábio. Veste uma cabaia de seda
branca, panos roxos e um biruni ou capa de escarlata própria de gente de
qualidade, porém, os sapatos de couro reforçado, pregados nas solas com muitos
pregos, têm escudetes nos calcanhares a terminarem num bico de uma polegada
para servir de espora, denunciam-no como comerciante ou criador de cavalos. Traz
o tronco cingido por umas correias de couro, estreitas e dobradas, guarnecidas
de ferro, de onde pende a espada com embutidos de prata no punho, caindo-lhe
atravessada sobre a coxa. Pêro admira-lhe a lâmina de aceiro muito fino, com
quatro palmos de comprido e gume muito afiado e sorri-lhe com agrado por ver
que o moço quer conversar com ele.
Perdoa
ao meu filho, por favor, amigo, acode o pai de imediato. Schaban, assi como
muitos jovens destes novos tempos, esquece as regras da mais simples cortesia e
perturba o recolhimento dos outros. O velho, de longa barba cor de cinza, traja
ao modo dos mercadores ricos uma cabaia de seda e um katebi de veludo de mangas
compridas, calça chinelas com as pontas rebitadas e traz na cabeça uma touca
branca e um turbante, composto por um carapução alto, com doze voltas de tecido.
Ambos têm rostos nobres e afáveis. Não tens de pedir desculpa, para mim tudo o
que interrompa a mesmice da viagem é bem-vindo, diz-lhes com gentileza e apresenta-se:
o meu nome é Ali Moumen e sou mercador de Al-Andalus. Eu sou Mir Bubaka, da
Pérsia, criador de cavalos de raça, e este é o meu filho, como já percebeste,
corresponde o velho levando a mão ao coração numa saudação de cortesia. Serve-te
destes pistus, que são mui saborosos! Volvendo à razão da nossa prática, julgo
que, para maior animação da sua vida enfadonha, Schaban anseia por um recontro
com o pirata Timoja. Tudo é preferível a este marasmo, zomba o moço. Com um corsário
ainda se pode lutar e vencer, agora com esta viagem... O escudeiro aceita por
cortesia um pistu retirando-lhe o miolo, que mordisca desconfiado, para logo
comer outro, deliciado com o sabor. Quem
é esse Timoja? Decerto haveria naqueles mares tantos perigos como no
Mediterrâneo ou no Atlântico e são essas as informações que ele vem buscar. No
início da minha viagem, sofri um mau encontro com salteadores do deserto e não
tenho grande vontade de repetir a graça no mar! Tens de me contar essa aventura,
roga Schaban. O pai retoma a palavra: Timoja, ou Timoji, como também lhe
chamam, é um dos maiores corsários da costa de Coromandel (costa que ia de
Narsinga, Vijayanagara, até Bengala) e, apesar da vigilância exercida com os
seus navios nos mares entre Adem e Malaca, o sultão do Guzarate não pode fazer
nada contra as cidades de Baticalá, Barkur e Honor, no reino de Bisnagar que é
isento (livre, independente), onde eles se refugiam após cada saque. - Não
posso deixar de sentir uma grande admiração por ele, meu pai, o homem é um
herói para os gentios!
Como
assi?, pergunta Pêro, sem conseguir parar de comer os pinhões que parecem
ajudar à prosa entre amigos, pois outros viajantes fazem o mesmo. Tanto Timoja
como o corsário Raogi eram gentios nobres e ricos do reino de Decão ou Daquanil,
conta Schaban com grande animação. Quando esse reino foi conquistado e sujeito
ao poder do Islão, eles recusaram obediência ao estrangeiro e juraram dar luta
sem tréguas a todas as embarcações de muçulmanos que cruzem as águas das costas
de Coromandel às do Malabar. Junto com outros rebeldes, formaram duas esquadras
com seis ou sete grandes navios de gente bem armada e lançaram-se no corso,
convertendo-se no terror dos mares para o sultão do Guzarate. E têm feito
grande razia nos nossos navios de mercadorias, exclama Mir Bubaka com azedume,
mostrando não participar da admiração do filho. Deixam muita gente viva, coisa
fora dos costumes dos corsários, reponta o moço. Porque vivem em Honor,
favorecidos pelo senhor da terra que não quer desencadear a má vontade e
represálias do sultão. Olha, estamos já nas águas de Tolinate. É a primeira
província de Narsinga, o reino de Vijayanagara, mui rico em vilas e cidades,
senhor de outros reinos como Baticalá, Bacanor e Bisnagar, onde há um boníssimo
porto de mar». Deana
Barroqueiro, O Espião de D. João II, na Demanda dos Segredos do Oriente e do
Misterioso Reino do Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-8092-58-8.
Cortesia de
Ésquilo/JDACT