1828
– 1831. S. Miguel Arcanjo
«Lembro-vos, Senhor, o signo debaixo de que
nascestes, e seja este o último suspiro do meu afecto: nascestes no dia em que
morreu o Rei dos Reis e Monarca Supremo do Mundo, para dar exemplo de morrer a
príncipes».
In António Vieira, História do
Futuro
«Os
dois emigrantes, a bordo da escuna Le Dragon zarpando de Belém, sabem
que os príncipes ainda não aprenderam o exemplo de bem morrer. Para trás fica o
passado. E nada mais para levar nos olhos que essas duas silhuetas sob a poalha
da chuvinha, Rita Silva e seu filho João. Ninguém mais arrostara com o medo dos
cacetes carcundas, nem os amigos do Castelo e de Alfama, nem os companheiros,
encafuados os que sobraram dos alentos trazidos pelo Belfast, em esconderijos
protectores do físico ou cosidos com as sombras onde escurenta a esperança
liberal. Rita Silva e seu filho João, eis o que resta, além da espuma lambendo
a beira do Tejo picado do Sudoeste pela brisa molhada, no adeus de Raimundo
Anunciação e Filipe Maldonado Villepin, malhados emigrando, neste Dezembro
triste, imerso em cinzas. Raimundo vê os píncaros dos Jerónimos furando como
puas aqueles céus fechados que testemunharam mais partidas que chegadas, desde
que os portugueses viraram as costas à terra onde sempre deixavam depositado o
coração, na esperança de voltarem para o resgatar, à custa de sangue e de
saudade. Tanto quis ver mundo, para educar os olhos noutras maravilhas que lhe
guiassem a mão de artista, e afinal olha para a sua terra a fugir-lhe à popa do
navio, com duas silhuetas escuras a esboçarem um adeus aflito. Não foi assim
que sonhou ir ao mundo, mas aprendera há muito que só na ponta dos pincéis
assestados às telas se constroem os sonhos, que os das noites são pesadelos de
vida a minguar com muito de vivido, bom e mau, em todo o caso, aquém dos
projectos, como acontece a quem tem de todos os dias a ânsia da novidade e da
fantasia. Filipe tem os olhos secos e mais pretos que de seu natural, a boca
cerrada, as mãos fincadas no rebordo da amurada, os caracóis dos cabelos loiros
desordenados pelo vento e pela chuva. É uma estátua de revolta espessa, dura,
polida por um ódio novo ao mundo velho que fica para trás. As chibatadas
miguelistas que lhe traçaram vergões nos ombros, nas correrias loucas da
chegada do usurpador, furiosamente celebrada pelos realistas absolutos, essas
chibatadas marcaram-lhe o destino. Filipe sabe que há-de voltar. Raimundo não.
E
aí vão os dois, prosseguindo uma partilha começada há vinte anos, um, moço na
flor da vida; outro, homem no Outono das ilusões. Rita Silva aconchega-se no
xale empapado e passa pela face um lenço de chita que nada seca da chuva e do
pranto. Atira uma derradeira mirada para o chumbo do horizonte, a ver as velas
da escuna a reduzirem-se a pontos brancos, no rumo da barra e do nunca mais.
Seu filho João puxa-a mansamente pelo braço. Vamos lá, minha mãe... E, com a mão
livre, trombeteia a venta e sacode o monco dos dedos grossos. Rita não
interrompe o responso, pontoado de suspiros, quando vira as costas ao Tejo
escuro e inimigo que lhe leva os seus. Os nossos... Ora, ora, minha mãe! Um
padrinho e um irmão de leite que nos deixam à beira da miséria e que a senhora
serviu por nada estes vinte anos... Assim está falando o seu João, quando ela
ainda revê o mestre Raimundo e o menino Filipe a acomodarem-se no escaler da
escuna sacudido pelo rio picão. Que são a família deles, responde a Rita. E o
filho, contrafeito e reticente, misturando entoações de tristeza e despeito: Pois
sim... Mas abandonam-nos como criados.
A
chuvinha pára e eles vão, lado a lado, chapinhando as chancas na lama,
regelados por dentro e por fora. Antes de Alcântara têm de saltar para o abrigo
dum portal, para escaparem sem empeno aos tombos desarvorados duma sege puxada
por uma parelha de mulas a galope, perseguida por uma matilha de rafeiros a
ladrar. João Silva desabafa pragas e maldições e a mãe persigna-se e invoca a
Virgem Santíssima. Filipe Villepin permanece à amurada, único passageiro da
escuna a querer olhar a última sombra da terra a sumir-se. Tem vinte anos e já
algumas contas a acertar com o destino. Vê Raimundo coxeando, a recolher-se ao
abrigo da camarata, e mantém-se firme a desafiar a intempérie. Não olha aquele
jovem apenas a saudade a afogar a terra já escondida no horizonte, no baloiço
do mar que se faz grosso, levando mais uma vaga de fugitivos do despotismo
acirrado pelos frades e pelos picadores do Miguel. Aos quinze anos começara a
dança das furtas, escondendo o nome paterno que, por francês, o fazia suspeito,
para escapar às primeiras escaramuças dos apaniguados do infante, fiéis
discípulos da rainha Carlota Joaquina, na sequência da rebeldia de Vila Franca
contra a Constituição. A abrilada fora pior. A corja do Miguel ensandecera,
atropelando em correrias de campinos, arruaças de fadistas, galopadas de
estribeiros e moços fidalgos, à aventura, desabando fúrias sobre os
pedreiros-livres, os moderados suspeitos, os liberais, em rusgas selvagens,
invadindo casas e espancando quem calhava. Era uma pandilha boçal investindo
como toiros sobre um mação (maçon) distraído ou um letrado com dois livros
entalados no sovaco». In Álvaro Guerra, A Guerra Civil, Publicações
dom Quixote, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1993, ISBN 972-201-083-2.
Cortesia
BN/PdQuixote/JDACT