terça-feira, 12 de maio de 2015

Noites de Jasmim. Júlia Gregson. «Há dias em que vivemos como se a morte não estivesse à espreita; de alegria em alegria; de asa em asa, de for em flor a impossível flor, a doce impossível flor»

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Hospital Queen Victoria, East Grinstead, 1942
«Fora apenas uma canção. Foi isso que ele pensou quando ela colocara de novo o chapéu e partira, deixando um odor leve a maçãs frescas atrás de si. Apenas uma canção; e uma rapariga bonita. Mas o mínimo que podia dizer a respeito da melhor coisa que lhe acontecera há muito tempo era o facto de ela ter feito com que ele deixasse de ter os sonhos. No primeiro, ele estava suspenso por um paraquedas com cerca de cinco quilómetros e meio entre as solas dos pés e a região rural do condado de Suffolk. Estava a gritar porque não conseguia aterrar. Atravessava impetuosamente o ar, uma coisa leve, insubstancial, como a lanugem de um cardo ou uma traça morta. A relva verde cintilante, tão familiar e tão amada, abatia-se sob ele, para depois se afastar de novo com um sacão. Por vezes, surgia uma mulher que o fitava boquiaberta, e acenava-lhe enquanto ele descia a flutuar, mas, no momento a seguir, desaparecia numa raiada de vento. No segundo sonho, ele estava outra vez no seu Spitfire. A aeronave de Jacko estava ao lado da sua. No início, soube-lhe bem estar lá em cima, à luz do sol clara e fria, mas depois, num momento de pânico nauseante, ele sentiu que as pálpebras tinham sido cosidas uma à outra, e não conseguia ver. Não contou a ninguém. Era um dos sortudos, estava prestes a ir para casa após quatro meses ali. Havia bastantes em estados bem piores do que o dele neste lugar de corredores escuros e gritos abafados. Todos os dias, ele ouvia o ressoar de ambulâncias com novas vítimas de queimaduras, recolhidas de aeronaves despedaçadas ao longo de toda a costa oriental britânica.
A enfermaria, uma extensão do hospital, estava alojada num abrigo longo e estreito com vinte camas em ambos os lados, e no meio, estava uma salamandra bojuda, uma mesa e um piano com dois castiçais de latão dispostos de forma festiva por cima. A enfermaria cheirava a curativos manchados, a arrastadeiras, a carne viva e moribunda: cheiros de velhos, embora a maioria dos pilotos de caça ali presentes não contassem mais do que vinte e poucos anos. Stourton, no final da enfermaria, que pilotava Hurricanes a partir do aeródromo de North Weald, era um homem cego há já, duas semanas. A sua namorada visitava-o todos os dias para lhe ensinar Braille. Squeak Townsend, o rapaz vermelhusco da cama ao lado com uma risada ruidosa e pouco convincente, era um piloto de caça que fraturara a coluna quando o seu paraquedas não abrira, e que confessara a Dom há alguns dias que tinha demasiada miúfa para voltar a pilotar de novo. Dom sabia que tivera sorte. Estava a pilotar um Spitfire vinte mil pés acima de uma sucessão de campos quando o cockpit fora transformado numa tocha ardente pela explosão do tanque de gasolina localizado à frente do painel de instrumentos. As suas mãos e rosto tinham sofrido queimaduras, as lesões típicas de pilotos de caça, dissera o cirurgião e, nos momentos atrozes entre as chamas e o chão, ele abrira a capota do avião, procurara desajeitadamente a tira verde-viva que abria o seu paraquedas, tombara no espaço durante aquilo que lhe pareceu uma eternidade e aterrara finalmente, a balbuciar e a gritar no cimo de uma meda de feno de um agricultor na costa do Suffolk.
Na semana passada, o médico Kilverton, o descontraído novo cirurgião plástico que agora se deslocava de hospital em hospital, viera até ao Queen Victoria e examinara a queimadura do lado direito do rosto dele. Lindo. O olho injectado de sangue de Kilverton espreitara por um microscópio para o ponto onde o enxerto de pele nova retirada da nádega de Dom havia sido cosido aos retalhos por cima das queimaduras dele. Isto vai demorar seis a sete semanas a curar. Depois, deverá ficar totalmente operacional. Boa pele, acrescentou ele. Mediterrânica? A minha mãe, explicou Dom, através de dentes cerrados. Kilverton estava a arrancar cuidadosamente pele velha ao mesmo tempo, analisando o enxerto. É francesa. E o seu pai? Dom queria que ele se calasse. Era mais fácil refugiar-se na dor e não alinhar na típica conversa de cocktail». In Júlia Gregson, Noites de Jasmim, Edições ASA, tradução de Ana Pereira, 2012, ISBN 978-989-231-964-3.

Cortesia ASA/JDACT