Hospital Queen Victoria, East Grinstead, 1942
«Fora
apenas uma canção. Foi isso que ele pensou quando ela colocara de novo o chapéu
e partira, deixando um odor leve a maçãs frescas atrás de si. Apenas uma
canção; e uma rapariga bonita. Mas o mínimo que podia dizer a respeito da
melhor coisa que lhe acontecera há muito tempo era o facto de ela ter feito com
que ele deixasse de ter os sonhos. No primeiro, ele estava suspenso por um
paraquedas com cerca de cinco quilómetros e meio entre as solas dos pés e a
região rural do condado de Suffolk. Estava a gritar porque não conseguia
aterrar. Atravessava impetuosamente o ar, uma coisa leve, insubstancial, como a
lanugem de um cardo ou uma traça morta. A relva verde cintilante, tão familiar
e tão amada, abatia-se sob ele, para depois se afastar de novo com um sacão.
Por vezes, surgia uma mulher que o fitava boquiaberta, e acenava-lhe enquanto
ele descia a flutuar, mas, no momento a seguir, desaparecia numa raiada de
vento. No segundo sonho, ele estava outra vez no seu Spitfire. A aeronave de Jacko estava ao lado da sua. No
início, soube-lhe bem estar lá em cima, à luz do sol clara e fria, mas depois,
num momento de pânico nauseante, ele sentiu que as pálpebras tinham sido
cosidas uma à outra, e não conseguia ver. Não contou a ninguém. Era um dos
sortudos, estava prestes a ir para casa após quatro meses ali. Havia bastantes
em estados bem piores do que o dele neste lugar de corredores escuros e gritos
abafados. Todos os dias, ele ouvia o ressoar de ambulâncias com novas vítimas
de queimaduras, recolhidas de aeronaves despedaçadas ao longo de toda a costa
oriental britânica.
A
enfermaria, uma extensão do hospital, estava alojada num abrigo longo e
estreito com vinte camas em ambos os lados, e no meio, estava uma salamandra
bojuda, uma mesa e um piano com dois castiçais de latão dispostos de forma
festiva por cima. A enfermaria cheirava a curativos manchados, a arrastadeiras,
a carne viva e moribunda: cheiros de velhos, embora a maioria dos pilotos de
caça ali presentes não contassem mais do que vinte e poucos anos. Stourton, no
final da enfermaria, que pilotava Hurricanes
a partir do aeródromo de North Weald, era um homem cego há já, duas semanas. A
sua namorada visitava-o todos os dias para lhe ensinar Braille. Squeak Townsend,
o rapaz vermelhusco da cama ao lado com uma risada ruidosa e pouco convincente,
era um piloto de caça que fraturara a coluna quando o seu paraquedas não
abrira, e que confessara a Dom há alguns dias que tinha demasiada miúfa para voltar
a pilotar de novo. Dom sabia que tivera sorte. Estava a pilotar um Spitfire vinte mil pés acima de
uma sucessão de campos quando o cockpit
fora transformado numa tocha ardente pela explosão do tanque de gasolina
localizado à frente do painel de instrumentos. As suas mãos e rosto tinham
sofrido queimaduras, as lesões típicas de pilotos de caça, dissera o cirurgião e,
nos momentos atrozes entre as chamas e o chão, ele abrira a capota do avião,
procurara desajeitadamente a tira verde-viva que abria o seu paraquedas,
tombara no espaço durante aquilo que lhe pareceu uma eternidade e aterrara
finalmente, a balbuciar e a gritar no cimo de uma meda de feno de um agricultor
na costa do Suffolk.
Na
semana passada, o médico Kilverton, o descontraído novo cirurgião plástico que
agora se deslocava de hospital em hospital, viera até ao Queen Victoria e
examinara a queimadura do lado direito do rosto dele. Lindo. O olho injectado
de sangue de Kilverton espreitara por um microscópio para o ponto onde o
enxerto de pele nova retirada da nádega de Dom havia sido cosido aos retalhos
por cima das queimaduras dele. Isto vai demorar seis a sete semanas a curar. Depois,
deverá ficar totalmente operacional. Boa pele, acrescentou ele. Mediterrânica?
A minha mãe, explicou Dom, através de dentes cerrados. Kilverton estava a arrancar
cuidadosamente pele velha ao mesmo tempo, analisando o enxerto. É francesa. E o
seu pai? Dom queria que ele se calasse. Era mais fácil refugiar-se na dor e não
alinhar na típica conversa de cocktail».
In
Júlia Gregson, Noites de Jasmim, Edições ASA, tradução de Ana Pereira, 2012,
ISBN 978-989-231-964-3.